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Dossiê - Livro Didático



Artigo
Publicação: Folha de São Paulo
Data: 06/06/2011
Autor: Ricardo Semler.
Ricardo Semler é empresário. Foi scholar da Harvard Law School e professor de MBA no MIT, ambos nos EUA. Escreveu dois livros ("Virando a Própria Mesa" e "Você Está Louco") que venderam juntos 2 milhões de cópias em 34 línguas.

Última flor do laço

"Li o livro aprovado pelo MEC e o achei bom - que exista e seja distribuído. Os alunos contemporâneos têm que discutir como se faz a adaptação de uma linguagem para que seja acessível e democrática, como os EUA fizeram com o inglês, que tem apenas 25 mil palavras cotidianamente usadas, contra 49 mil empregadas na Inglaterra. O livro "Por uma Vida Melhor" aceita a concordância "errada", mas defende a norma culta e explica que o significado é compreensível mesmo com "equívocos"."



Artigo
Publicação: O Estado de SP
Data: 30/05/2011
Autor: Sergio Fausto
. Sergio Fausto é diretor executivo do Instituto Fernando Henrique Cardoso e membro do GACINT da Univesidade de São Paulo

Educação para o debate

"Dei-me ao trabalho de ler o capítulo de onde foram extraídas as "provas" do suposto crime contra a língua portuguesa. Chama-se Escrever é diferente de falar, título que já antecipa uma preocupação com o bom emprego da língua no registro formal, típico da escrita. São algumas páginas. Nada que um leitor treinado não possa enfrentar em cerca de 10 ou 15 minutos de leitura atenta. Se a fizer sem prevenção, constatará que o livro não aceita a sobreposição da linguagem oral sobre a linguagem escrita em qualquer circunstância, como chegou a ser escrito."



Manifesto
Data: 27/05/2011
Autoria: Círculo Educação Lingüística - professora-coordenadora: Margarete Schlatter.
O Círculo Educação Linguística reúne professores de português do ensino fundamental e médio, professores de português como língua adicional e estudantes e professores da área de Letras. O grupo surgiu em Porto Alegre (RS), em meio a debates sobre a polêmica na mídia brasileira provocada pelo livro “Por uma Vida Melhor”, da Coleção Viver, Aprender – adotado pelo Ministério da Educação (MEC)e distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos (PNLD-EJA).

Sabemos escolher como falar e como escrever porque discutimos isso na escola

"Por meio do manifesto "Sabemos escolher como falar e como escrever porque discutimos isso na escola", expressamos nosso repúdio às interpretações equivocadas de que o livro sugere o ensino de um “português errado”: essa interpretação só pode ser feita por quem sequer abriu o livro para entender que o que está proposto é uma reflexão sobre as variedades linguísticas do Brasil e a importância da aprendizagem da norma culta.Novas manifestações do Círculo sobre a função social da escola contemporânea em promover o letramento e a educação linguística serão publicadas no blog https://educacaolinguistica.blogspot.com/."



Artigo
Publicação: O Globo
Data: 27/05/2011
Autor: Ricardo Salles
- Ricardo Salles é advogado.

Aldrovando Cantagalo

"Condena-se, com muita energia (e, às vezes, com boa dose de leviandade), a autora do capítulo 1 do livro "Por uma vida melhor", distribuído pelo MEC a escolas públicas de todo o país. Mas a coisa é muito esquisita: a moça é acusada pelo que não fez!"



Artigo
Publicação: Carta Capital
Data: 25/05/2011
Autor: Adilson de Carvalho
- Adilson de Carvalho é formado em letras pela UnB e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.

Por um debate para além do obscurantismo

"Há muita desinformação, má fé e preconceito na polêmica criada em torno do livro Uma vida melhor, da professora Heloísa Ramos. O livro faz parte do Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação, e vem sendo execrado por diversos jornalistas e outros moralistas, sob a acusação de que a obra orientaria professores a ensinarem o “português errado” a seus alunos, em detrimento do que consideram o “bom e correto” uso da língua."



Artigo
Data: 23/05/2011
Autor: Dante Lucchesi.
Dante Lucchesi é professor associado de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia e Pesquisador do CNPq

Preconceito linguístico ou ensino democrático e pluralista?

"Foi o suficiente para que políticos, jornalistas, intelectuais e professores manifestassem toda a sua perplexidade e indignação. Até uma procuradora do Ministério Público Federal, no melhor estilo udenista da Marcha com Deus pela Família, ameaçou com processo os responsáveis pela edição e pela distribuição do livro. Argumentou-se que, sendo a missão da escola ensinar a “forma correta”, não podia admitir o uso da “forma errada”; e que à escola cabia ensinar a norma culta, e não a popular. Chama a atenção, em primeiro lugar, o açodamento e leviandade de alguns posicionamentos, que revelaram que seus autores sequer se deram ao trabalho de ler o livro."



Artigo
Publicação: O Globo
Data: 23/05/2011
Autor: Marcos Bagno.
Marcos Bagno é linguista, escritor, tradutor e professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília.

Uma falsa polêmica


"Ao fazer tanto alarde em torno de algo que para os educadores é uma prática já consolidada, essa falsa polêmica, na verdade, é mero pretexto para os que se empenham em reunir mais munição para desacreditar o governo da presidente Dilma Rousseff: os mesmos que, amparados pela grande mídia (comprometida até as entranhas com os interesses das elites de um país campeão mundial das desigualdades), tornaram a última campanha presidencial um desfile de mentiras grotescas. Por isso, é melhor procurar em outro canto, porque aqui a "culpa" não é deste governo, mas vem de muito antes."



Entrevista
Publicação: Portal IG
Data: 23/05/2011
Autor: Ataliba de Castilho.
Ataliba de Castilho é autor da Nova Gramática do Português Brasileiro, lançado em abril deste ano.

Autor de nova gramática diz ser difícil brasileiro seguir regras da língua portuguesa

"... os autores do livro didático Por uma vida melhor, que dedica um capítulo ao uso popular da língua, estão empenhados em discutir a amplitude e a criatividade da língua portuguesa, além do conceito de certo e errado estabelecido pela norma culta."



Artigo
Publicação: Estadão Online
Data: 22/05/2011
Autor: Sírio Possenti
- Sírio Possenti é professor do Departamento de Lingüística - Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de questões para analistas de discurso e a Língua na Mídia (parábola).

Analisar e opinar. Sem ler

"O jornalismo nativo teve uma semana infeliz. Ilustres colunistas e afamados comentaristas bateram duro em um livro, com base na leitura de uma das páginas de um dos capítulos. Houve casos em que nem entrevistado nem entrevistador conheciam o teor da página, mas apenas uma nota que estava circulando (meninos, eu ouvi). Nem por isso se abstiveram de "analisar". Só um exemplo, um conselho e uma advertência foram considerados. E dos retalhos se fez uma leitura enviesada. Se fossem submetidos ao PISA, a classificação do país seria pior do que a que tem sido."



Artigo
Publicação: O Globo
Data: 21/05/2011
Autor: José Miguel Wisnik
- José Miguel Soares Wisnik é professor de Teoria Literária na USP.

“Dona Norma”

"Leio o capítulo do livro em questão e vejo, no entanto, que a autora se dedica nele, a maior parte do tempo, a mostrar a importância da pontuação, da concordância e da boa ortografia na língua escrita. Onde está o erro?"



Artigo
Publicação: O Globo
Data: 20/05/11
Autor: Miguel Conde -
Miguel Conde é jornalista.

“Um debate estridente”

"Dada a estridência com que se tem desenrolado a discussão, pode ser útil, antes de tomar parte na briga, atentar para alguns trechos do livro até o momento ignorados nas citações que têm sido feitas."



Nota
Publicação: Site da Associação Brasileira de Lingüística (Abralin)
Data: 20/05/2011
Autora: Maria José Foltran, Presidente da Abralin

Nota da Associação Brasileira de Linguística

"Diante de posicionamentos virulentos externados na mídia, alguns até histéricos, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA - ABRALIN - vê a necessidade de vir a público manifestar-se a respeito, no sentido de endossar o posicionamento dos linguistas, pouco ouvidos até o momento."



Nota
Publicação: Site da Associação Brasileira de Linguística Aplicada do Brasil (Alab)
Data: 20/05/2011
Autora: Paula Tatianne Carréra Szundy, Presidente da ALAB, biênio UFRJ 2009-2011

Polêmica em relação a erros gramaticais em livro didático de Língua Portuguesa revela incompreensão da imprensa e população sobre a atuação do estudioso da linguagem

"O grande incômodo, relacionado ao fato do livro relativizar o uso da norma culta, substituindo a concepção de “certo e errado” por “adequado e inadequado”, retrata a incompreensão da imprensa e população em relação ao escopo de atuação de pesquisadores que se ocupam em compreender e analisar os usos situados da linguagem."



Artigo
Publicação: Site Terra Magazine
Data: 19/05/2011
Autor: Sírio Possenti
- Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística / Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de questões para analistas de discurso e a Língua na Mídia (parábola).

Aceitam tudo

"Como se sabe, houve época em que dizer que a Terra gira ao redor do sol dava fogueira. Semmelveis foi escorraçado pelos médicos que mandavam em Viena porque disse que todos deveriam lavar as mãos antes de certos procedimentos (por exemplo, quem viesse de uma autópsia e fosse verificar o grau de dilatação de uma parturiente). Não faltou quem dissesse "quem é ele para mandar a gente lavar as mãos?"



Artigo
Publicação: Gazeta do Povo (PR)
Data: 19/05/2011
Autor: Carlos Alberto Faraco
- Carlos Alberto Faraco, linguista, foi professor de português e reitor da UFPR.

Polêmica vazia

"Pior ainda: jornalistas respeitáveis e até mesmo um conhecido gramático manifestam indignação claramente apenas por ouvir dizer e não com base numa análise criteriosa do material. Não podemos senão lamentar essa irresponsável atitude de pessoas que têm a obrigação, ao ocupar o espaço público, de seguir comezinhos princípios éticos."



Artigo
Publicação: Blog do professor Marcos Bagno
Data: 18/05/2011
Autor: Marcos Bagno
- Marcos Bagno é é linguista, escritor, tradutor e professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília.

Polêmica ou ignorância?

"Já faz mais de quinze anos que os livros didáticos de língua portuguesa disponíveis no mercado e avaliados e aprovados pelo Ministério da Educação abordam o tema da variação linguística e do seu tratamento em sala de aula. Não é coisa de petista, fiquem tranquilas senhoras comentaristas políticas da televisão brasileira e seus colegas explanadores do óbvio."



Artigo
Publicação: Folha de São Paulo
Data: 16/05/2011
Autor: Hélio Schwartsman
- Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia articulista da Folha de São Paulo.

Uma defesa do "erro" de português

"Os mais espevitados já viram aí um plano maligno do governo do PT para pespegar a anarquia linguística e destruir a educação, pondo todas as crianças do Brasil para falar igualzinho ao Lula."



ARTIGOS COMPLETOS

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Artigo
Publicação: Folha de São Paulo
Data: 06/06/2011
Autor: Ricardo Semler.
Ricardo Semler é empresário. Foi scholar da Harvard Law School e professor de MBA no MIT, ambos nos EUA. Escreveu dois livros ("Virando a Própria Mesa" e "Você Está Louco") que venderam juntos 2 milhões de cópias em 34 línguas.

Última flor do laço

Exigir o domínio da língua culta, desenvolvida por, e para, as elites, é fator formador de castas NA EXPOSIÇÃO "6 Bilhões de Outros", no Masp, em São Paulo, há o depoimento de um soldado americano, que passou semanas conversando com dois afegãos, pai e filho -sem idioma comum, mas com alta compreensão mútua.

Na moral -sabe q tem dicionário irado com essas parada aí neles- demorô! "Irado" e "demorô" constam do Caldas Aulete. E tá prvdo q n prcsa de tds as ltrs pa entdr qq frase.

Conclui-se que a questão antropológica de comunicação não está em jogo quando um livro, como o "Por uma Vida Melhor", é assediado pelo patrulhamento multi-ideológico.  

Evanildo Bechara, da embolorada ABL, defende, na "Veja", que a norma culta da língua continue cobrando pedágio de acesso ao mundo superior. Sem dúvida, negar o aprendizado da língua culta é inaceitável. Caberia só discutir o que é suficiente.

Convém lembrar que a quantidade de unidades lexicais do português demandaria o aprendizado de 350 delas por dia letivo, por cinco anos -são 350 mil no total!

Por outro lado, exigir o domínio da língua culta, desenvolvida a esse alto nível por, e para, as elites, é fator formador de castas. É assim na Inglaterra, onde o "Queen"s English" é ensinado nos internatos, na Alemanha, com seu "Hoch Deutsch" e, naturalmente, na Índia, onde só os brâmanes "falam direito".

É só observar como os médicos se protegem com um linguajar intransponível, os advogados começam frases com "priscas eras" e os engenheiros falam em "senoidal" para descrever um arco. Ninguém penetra nesses clubinhos sem passar na prova de compatibilidade tribal -e tem elitismo sim.

Li o livro aprovado pelo MEC e o achei bom -que exista e seja distribuído. Os alunos contemporâneos têm que discutir como se faz a adaptação de uma linguagem para que seja acessível e democrática, como os EUA fizeram com o inglês, que tem apenas 25 mil palavras cotidianamente usadas, contra 49 mil empregadas na Inglaterra.

O livro "Por uma Vida Melhor" aceita a concordância "errada", mas defende a norma culta e explica que o significado é compreensível mesmo com "equívocos".

Se nóis falemo errado, não é só questão de exigir melhores professores e policiamento intelectual; é também preciso reduzir as regras e as complicações para flexibilizar a língua. Isso permitiria maior acesso às profissões, bem como ascensão social, sem o preconceito do uso da linguagem exata.

Em vez de ficar em mãos de eruditos empoeirados, as novas normas linguísticas deveriam ser editadas por comissões paritárias do país.

Nada impede que os interessados continuem levando as preciosidades a patamares olímpicos, como forma de arte ou mesmo por masturbação mental.

O Mussolini era torcedor da Lazio, que é a região da Itália de onde saiu a última flor do latim a que o Bilac se refere, o português.

Como sabemos desde Mussolini e Stálin, sabedoria e norma culta não têm quase nada em comum. Isso seria bem lembrado nos chás das academias de vosmecês.



Artigo

Publicação: O Estado de SP
Data: 30/05/2011
Autor: Sergio Fausto. Sergio Fausto é diretor executivo do Instituto Fernando Henrique Cardoso e membro do GACINT da Univesidade de São Paulo

Educação para o debate

Disseram que o livro Por uma Vida Melhor estaria autorizando o desrespeito generalizado às regras da concordância e abolindo a diferença entre o certo e o errado no emprego da língua portuguesa. Tudo isso com o beneplácito do MEC.

A celeuma ganhou os jornais nas últimas semanas. Foi motivada por um trecho no qual se afirma que o aluno pode dizer "os livro". Parece a senha para um vale-tudo na utilização da língua. Não é, mas assim foi lido.

Não conheço a autora nem sou educador, embora vínculos de família me tenham feito conviver com educadoras desde sempre. Escolhi comentar o caso não apenas porque se refere a um tema importante, mas também porque exemplifica um fenômeno frequente no debate público. Tão frequente quanto perigoso.

O procedimento consiste na desqualificação de ideias sem o mínimo esforço prévio de compreendê-las. Funciona assim: diante de mero indício de convicções contrárias às minhas, detectados em leitura de viés ou simples ouvir dizer, passo ao ataque para desmoralizar o argumento em questão e os seus autores. É a técnica de atirar primeiro e perguntar depois. A vítima é a qualidade do debate público.

Existem expressões, e mesmo palavras, que têm o condão de desencadear essa reação de ataque reflexo. Há setores da opinião pública para os quais a simples menção à privatização é motivo para levar a mão ao coldre. No caso em pauta, o gatilho da celeuma foi a expressão "preconceito linguístico" para qualificar a atitude de quem estigmatiza o "falar errado" da linguagem popular. Houve quem aventasse a hipótese de que o livro visasse à justificação oficial dos erros gramaticais do ex-presidente Lula. Um despropósito.

Dei-me ao trabalho de ler o capítulo de onde foram extraídas as "provas" do suposto crime contra a língua portuguesa. Chama-se Escrever é diferente de falar, título que já antecipa uma preocupação com o bom emprego da língua no registro formal, típico da escrita. São algumas páginas. Nada que um leitor treinado não possa enfrentar em cerca de 10 ou 15 minutos de leitura atenta. Se a fizer sem prevenção, constatará que o livro não aceita a sobreposição da linguagem oral sobre a linguagem escrita em qualquer circunstância, como chegou a ser escrito.

Ao contrário, no capítulo em questão, a autora busca justamente marcar a diferença entre a norma culta, indispensável na escrita formal, e as variantes populares da língua, admissíveis na linguagem oral. Não se exime ela do ensino das regras. Mas, em vez de recitá-las, vale-se da técnica da reescrita. Há uma seção particularmente interessante sobre o uso da pontuação. Vale a pena citar uma passagem: "(...) uma cuidadosa divisão em períodos é decisiva para a clareza dos textos escritos. A língua oral conta com gestos, expressões, entonação de voz, enquanto a língua escrita precisa contar com outros elementos. A pontuação é um deles".

Noves fora um certo ranço ideológico, aqui e ali, o livro é de bom nível. Trabalho de gente séria, que merece crédito. E um pouco mais de respeito. Fica o testemunho: a ONG responsável pela obra tem entre seus dirigentes, se a memória não me trai, profissionais responsáveis, no passado, por um dos melhores cursos de Educação para Jovens e Adultos da cidade de São Paulo, o supletivo do Colégio Santa Cruz.

É justamente a esse público que o livro se dirige. Ele é formado por alunos que estão travando contato com a norma culta da língua mais tarde em sua vida. Nesse contato tardio, frequentemente se envergonham do seu falar. Emudecem. Reconhecer a legitimidade do repertório linguístico que carregam é condição para que possam aprender. Não se trata de proteger esse repertório das convenções da norma culta, para supostamente preservar a autenticidade da linguagem popular. Isso, sim, seria celebração da ignorância. E populismo. O livro não ingressa nesse terreno pantanoso.

O que está dito acima se aplica também às crianças quando iniciam o processo de alfabetização. Sabe-se que o primeiro contato com a norma culta da língua é crucial para o desempenho futuro do aluno como leitor e escritor. Sabe-se igualmente que a absorção da norma culta é um longo processo. O maior risco é o de bloqueá-lo logo ao início, marcando com o estigma do fracasso escolar os primeiros passos do aprendizado. No início dos anos 1980, mais de 60% dos alunos eram reprovados na primeira série do ensino fundamental, o que se refletia em altas taxas de evasão escolar. Embatucavam no contato com as primeiras letras (e as primeiras operações aritméticas). Melhoramos desde então? Sim, as taxas de repetência, defasagem idade/série e evasão escolar diminuíram. Parte da melhora se deve à adoção da progressão continuada, outra presa fácil da distorção deliberada, pois passível de ser confundida com a aprovação automática.

Não aprendemos, ainda, porém, como assegurar a qualidade desejada no aprendizado da língua. Mas há sinais de vida. O desempenho dos alunos em Português vem melhorando, em especial no primeiro ciclo do ensino fundamental, conforme indicam avaliações nacionais e internacionais, ainda que mais lentamente do que seria desejável e necessário. A verdade é que o desafio é enorme: não faz muitos anos que as portas da educação fundamental se abriram para todos e a escola passou a ter de ensinar ao "filho do pobre" - dezenas de milhões de crianças - a norma culta da língua, que seus pais não dominam.

Há muita discussão e aprendizado a serem feitos para vencer esse desafio. É ótimo que todos queiram participar. Mas é preciso educar-se para o debate. Isso implica desde logo dar-se ao trabalho de conhecer o tema em pauta e ter a disposição de entender o ponto de vista alheio antes de desqualificá-lo. Sem querer ser pedante, é o que dizia Voltaire, séculos atrás: "Aprendi a respeitar as ideias alheias, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar". Todo mundo ganha com isso.


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Artigo
Publicação: O Globo
Data: 27/05/2011
Autor: Ricardo Salles
- Ricardo Salles é advogado.

Aldrovando Cantagalo

Assim se chamava o filho de um escrevente de cartório, em Itaoca, SP, personagem de "O colocador de pronomes", de Monteiro Lobato. Aldrovando nascera de um erro de gramática. O escrevente, ao mandar um bilhete apaixonado para a filha de um certo coronel Triburtino, escreveu "amo-lhe". Como o coronel, que interceptara a missiva, tinha duas filhas, uma - aquela cuja mão desejava o pai de Aldrovando - linda e elegante e outra muito feia e já tida como o encalhe da família, sua reação foi dar-lhe a mão da feia. Argumentava o astuto coronel que "lhe" é pronome de terceira pessoa e, assim, a amada não era a destinatária, mas outra moça que morava na mesma casa. Intimidado, o escrevente acabou se casando com a personificação da feiura e, como fruto dessa união, Aldrovando veio ao mundo.

Aldrovando, na falta de um objeto amado que, ao menos, respirasse, desde garoto se apaixonou por um livro de gramática. Aos 40 anos, sempre recluso, já tinha lido todos os clássicos da língua portuguesa, sabia de cor obras inteiras, mas nada sabia do mundo. Muito zeloso da boa norma gramatical, praguejava contra "regionalismos de má ressonância" e a "garabulha bordalenga que estampam os periódicos"; com energia invulgar, não deixava passar um galicismo, para ele, "um perene barbarizar com alienígenos arrevesos". Abrindo campanha contra os "ácaros do idioma", peticionou ao Congresso exigindo leis visando à repressão das formas impuras. "Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade", bradava o cioso beletrista. Com descortino de gênio, profetizava um futuro pouco risonho para a língua de Vera Cruz.

Parece que ultimamente foi exumado e levaram seus restos a algum feiticeiro que, a pedidos, vem tentando ressuscitá-lo.

O barulho que se tem feito em torno de umas poucas linhas de um capítulo de um livro didático de português para adultos, a ser utilizado em comunidades carentes, onde, com frequência, se fala fora da norma oficial da língua portuguesa, é digno do paladino da boa fala.

Condena-se, com muita energia (e, às vezes, com boa dose de leviandade), a autora do capítulo 1 do livro "Por uma vida melhor", distribuído pelo MEC a escolas públicas de todo o país. Mas a coisa é muito esquisita: a moça é acusada pelo que não fez!

Com efeito, a autora tece considerações a respeito de formas agramaticais empregadas em certos meios e diz que, embora se possa falar assim - e ser entendido, faltou ela dizer -, tais formas estão em desacordo com a norma gramatical que prevalece. Lembra a autora que, em certos meios e em determinadas circunstâncias, isso pode levar o falante a ser discriminado e a sofrer consequências desagradáveis na vida prática. Deveria ela fazer de conta que não existe esse falar para que a realidade mudasse? Algo como evitar de falar do diabo para que ele não apareça?

Enfatize-se que o livro se destina a pessoas que vivem em comunidades onde é comum falar variantes da língua portuguesa em que são abundantes as formas agramaticais, especialmente no que se refere a concordância nominal e verbal, sem qualquer prejuízo do perfeito entendimento, convém assinalar. Nos exemplos dados pela autora (como, por exemplo, "os menino pega os peixe"), não se pode dizer que a expressão é ilógica, obscura ou dúbia. A mensagem transmitida, mesmo em desacordo com a gramática, é clara. A variante, portanto, é válida e não pode ser ignorada. Nem se acuse a autora de fazer apologia do erro, pois ela mesma diz que as formas citadas não estão de acordo com as normas da gramática e, nos exercícios (4, 5 e 8, em especial), pede que o aluno faça as correções devidas, de modo a que a norma oficial seja entendida e aprendida. Tudo isso feito sem preconceitos e com naturalidade, de maneira a não constranger o adulto que pode estar acostumado a falar (e, claro, ouvir) desse jeito.

Não consiga, porém, o bruxo trazer Aldrovando de volta a este Vale de Lágrimas; que ele possa repousar eternamente no sono dos justos.

Afinal, o apóstolo , fruto de um erro de gramática, morreu por conta da má colocação de um pronome. Depois de abrir um "Consultório Gramatical" e uma "Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos", iniciativas empresariais que não lograram o esperado e devido êxito, nosso herói se debruçou com ímpeto apaixonado sobre o que veio a ser sua obra-prima: um tratado, em três volumes e 1.500 páginas, sobre a colocação de pronomes. Dedicou-a, com essas palavras, a Frei Luís de Souza: "À memória daquele que me sabe as dores"; o tipógrafo, no entanto, alterou a frase para fazê-la a seu modo: "À memória d"aquele que sabe-me as dores." Aldrovando, deparando com o novo texto, ao escrever um oferecimento do livro a Rui Barbosa, sofreu um infarto fulminante.

Coitado...


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Artigo
Publicação: Carta Capital
25/05/2011
Autor: Adilson de Carvalho
- Adilson de Carvalho é formado em letras pela UnB e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.

Por um debate para além do obscurantismo

Há muita desinformação, má fé e preconceito na polêmica criada em torno do livro Uma vida melhor, da professora Heloísa Ramos. O livro faz parte do Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação, e vem sendo execrado por diversos jornalistas e outros moralistas, sob a acusação de que a obra orientaria professores a ensinarem o “português errado” a seus alunos, em detrimento do que consideram o “bom e correto” uso da língua.

Não vou analisar a obra, até porque não li o livro, como não o fizeram 90% dos que o criticam. Considero mais importante, como requisito mínimo para esta e outras discussões sobre língua portuguesa, que as noções fundamentais sobre o funcionamento da língua e o seu ensino sejam esclarecidas.

Em primeiro lugar, é preciso superar a visão arcaica, distorcida, preconceituosa e anticientífica de que existe uma língua certa e elegante e outra errada e grosseira, como se a língua fosse algo semelhante a um código de etiqueta.

Essa forma de entender o funcionamento das línguas teve o seu lugar na tradição ocidental no fim da Idade Média em que o Império decadente insistia em barrar a “contaminação” do latim clássico pela pujante e vivaz ascensão das línguas nacionais. Hoje não faz o menor sentido pensar assim.

Já está muito bem esclarecido, por mais de 100 anos de pesquisa lingüística, que as línguas são fenômenos sociais dinâmicos e que toda e qualquer língua varia no tempo e no espaço. Isso é o que explica que a fala do brasileiro do século 21 seja muito diferente daquela dos primeiros portugueses que aqui desembarcaram, ou que a língua dos estadunidenses tenha diferenças abissais daquela dos ingleses, ou que os moradores de Belo Horizonte tenham hábitos lingüísticos distintos daqueles dos moradores dos morros do Rio de Janeiro, e assim por diante.

Essas constatações são óbvias. Mas admitir isso é também admitir que não adianta gastar energia na vã ilusão de que se vai padronizar o uso oral da língua. Queiram os puritanos ou não, admitam os conservadores ou não, continuaremos aqui e em qualquer lugar a ter diversas variantes lingüísticas, de acordo com o espaço, o tempo e a classe social, entre outros fatores. Então não faz qualquer sentido a discussão que se paute sobre o que seja ou não seja permitido no uso da língua oral. A língua não tem dono, é produto de todos os falantes da comunidade, mesmo que os charlatões vendedores de cursos de boas maneiras lingüísticas ou os insossos e empoeirados membros da ABL resistam em admitir. Portanto, falta legitimidade a quem quer que seja para dizer o que é certo ou errado na fala das pessoas.

Isso, por mais óbvio que seja, não é compreendido pelos dogmáticos da língua, que continuam a bradar que é um absurdo permitir que nossas criancinhas sejam incitadas ao erro ou que se formos permitir qualquer coisa estaremos corrompendo a língua e bla, bla, bla. Desconhecem esses missionários das trevas que, independentemente dos seus discursos raivosos e moralistas, a língua segue o seu curso.

Agora, outra coisa, bem diferente do universo em que acontece a língua falada, e isso também é uma premissa básica para qualquer discussão sobre o ensino português, é a língua escrita. Já está suficientemente demonstrado por inúmeros estudos que língua escrita é muito diferente da modalidade  falada. Fala, qualquer que seja a variante, aprende-se naturalmente com a simples imersão do aprendiz no ambiente. É assim que as crianças aprendem. Essa compreensão básica também foi muito bem assimilada pelos cursos de idioma estrangeiro, que deixaram de se concentrar no ensino de gramática normativa, porque compreenderam que isso tinha pouco ou nada a ver com o uso do idioma, e passaram a simplesmente criar situações de imersão orientada dos aprendizes em ambientes reais de uso da língua.

O aprendizado de língua escrita, portanto, é algo bem diferente do uso da língua falada. Requer estudo sistemático e muito treino. Se os alunos não forem estimulados a ler e a produzir textos escritos, naturalmente não vão dominar essa técnica. E esse é, aliás, a meu ver, o principal papel da escola: ensinar aos alunos o que eles não sabem e o que é possível ensinar, e não tentar controlar a fala deles ou incutir noções preconceituosas que lhes diminui a autoestima e rouba-lhes a oportunidade de uma reflexão crítica sobre as relações sociais e políticas que envolvem o uso da língua.

Se a escola se concentrar em orientar os alunos na reflexão sobre a língua e na produção e compreensão de textos orais e escritos nos mais diversos gêneros, como cartas, crônicas, notícias de jornal, atos normativos, debates televisivos, entrevistas e outros tantas situações reais de produção lingüística, creio que avançaremos em direção a uma educação de muito melhor qualidade.

Insistir no modelo defendido pelos que fazem parte da cruzada moralista, que defende a doutrinação dogmática para um modelo de língua que não existe no mundo real, é optar pelo duplo fracasso. Nem os alunos aprenderão as regras da gramática normativa, uma vez que ela é um compêndio de explicações com quase nenhum fundamento científico, nem aprenderão o básico, o necessário e fundamental para os desafios que encontrarão na vida prática, que é a habilidade para ler e escrever os textos que circulam no mundo real.

Essas diretrizes não são objeto de minha própria reflexão sobre o ensino de português, embora as considere adequadas. São, em síntese, o que recomendam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que é de 1996, e os Parâmetros Curriculares Nacionais, editados logo em seguida, ambos resultado de intenso debate social e de longa e fundamentada reflexão de estudiosos do assunto.

Até onde pude compreender sobre a intensa discussão criada em torno do livro Uma vida melhor, a autora simplesmente adota as concepções sobre língua acumuladas pela pesquisa e referendadas pela LDB e pelos PCNs. Além disso, ao contrário do que levianamente alegam os que querem censurar o livro, a publicação foi aprovada não pelo MEC, mas por um longo e democrático processo de avaliação. Por incrível que possa parecer, é exatamente isso que vem irritando alguns jornalistas e pseudointelectuais.

Que eles continuem esbravejando suas bobagens de cunho preconceituoso e conservador, tudo bem, têm lá seus interesses e têm direito de defendê-los. Que essa seja a única, ou quase única, voz nessa discussão tão importante, isso sim é preocupante.

Adilson de Carvalho é formado em letras pela UnB e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.


Artigo
Data: 23/05/2011
Autor: Dante Lucchesi.
Dante Lucchesi é professor associado de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia e Pesquisador do CNPq

Preconceito linguístico ou ensino democrático e pluralista?

Nos últimos tempos, a sociedade brasileira vem aprofundando seu caráter democrático, não apenas com a distribuição de renda promovida pela ação dos programas sociais do Governo Federal, como também no reconhecimento da diferença como parte do respeito à dignidade da pessoa humana. Hoje o racismo é tipificado como crime pelo Código Penal, e está em curso no Congresso Nacional um projeto de lei contra a homofobia. No plano da cultura, manifestações de matrizes historicamente marginalizadas, como a
africana, estão plenamente integradas, como os blocos afros no Carnaval da Bahia, a capoeira e o Candomblé. Porém, o preconceito e a intolerância ainda predominam em um plano essencial da cultura: a língua.

Nada mais revelador a esse respeito do que a comoção provocada pelo livro didático de língua portuguesa Por uma vida melhor, distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático, do Ministério da Educação (MEC), para a educação de jovens e adultos. A revolta se concentra em uma passagem do livro que diz que o aluno poderia dizer algo como “os livro”, em certos contextos, mas que deveria empregar a forma padrão “os livros”, sobretudo em situações formais para não ser vítima do preconceito linguístico.

Foi o suficiente para que políticos, jornalistas, intelectuais e professores manifestassem toda a sua perplexidade e indignação. Até uma procuradora do Ministério Público Federal, no melhor estilo udenista da Marcha com Deus pela Família, ameaçou com processo os responsáveis pela edição e pela distribuição do livro. Argumentou-se que, sendo a missão da escola ensinar a “forma correta”, não podia admitir o uso da “forma errada”; e que à escola cabia ensinar a norma culta, e não a popular. Chama a atenção, em primeiro lugar, o açodamento e leviandade de alguns posicionamentos, que revelaram que seus autores sequer se deram ao trabalho de ler o livro.

A obra, da autoria da professora Heloísa Ramos, baseia-se em princípios racionais e imprescindíveis para um ensino eficaz da língua materna, tais como o de que “falar é diferente de escrever”. E reconhece que o português, como qualquer língua humana viva, admite formas diferentes de dizer a mesma coisa, o que a ciência da linguagem denomina variação linguística. Informa ainda que a variação linguística reflete a estrutura da sociedade. No caso brasileiro, o cenário da variação social apresenta uma divisão entre uma norma culta e uma norma. O livro ainda alerta que, apesar de serem “eficientes como meios de comunicação”, as duas normas recebem uma avaliação social diferenciada, existindo “um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros”, mas que “esse preconceito não é de razão linguística, mas social”. Em vista disso, conclui que “o falante tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião”. Não há nada demais em tais afirmações. Os gramáticos mais esclarecidos reconhecem que o padrão da correção absoluta deve ser substituído pelo parâmetro da adequação relativa às diversas situações de uso da língua. É tão inadequado dizer “me dá menas tarefa” numa reunião formal de trabalho, quanto perguntar “poder-me-ia informar o preço desse vegetal?” em uma feira livre. Como diz ainda o questionado livro, “um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana”.

Informar ao aluno que a língua é plural e admite formas variantes de expressão, cada uma legítima em seu universo cultural específico, não é apenas a forma mais adequada de fazer com que o aluno conheça a realidade da sua língua, mas um preceito essencial de uma educação cidadã, fundada nos princípios democráticos, do reconhecimento da diferença como parte integrante do respeito à dignidade da pessoa humana. A pluralidade é o principal pilar de uma sociedade democrática, garantindo a diversidade de crenças, de opiniões, de comportamentos, de opções sexuais etc. Contudo, a diversidade linguística é vista sempre como uma ameaça, sem que as pessoas se deem conta do autoritarismo que tal visão dissemina.

A aceitação da diversidade linguística não entra em contradição com a necessidade da aquisição de uma norma padrão para uma melhor inserção em uma sociedade de classes, dominada pelo letramento. E inclusive o livro em questão se apresenta como um instrumento adequado desse ensino, com seus exercícios de pontuação, do uso canônico dos pronomes e até do emprego das sacrossantas regras de concordância, que ousou desafiar, tocando em uma aspecto nevrálgico da visão discricionária de língua que predomina na
sociedade brasileira. O reconhecimento da diversidade linguística, longe de ser prejudicial, é uma condição sine qua non para uma escola democrática e inclusiva, que amplia o conhecimento do aluno sem menosprezar sua bagagem cultural. A imposição de uma única forma de usar a língua, rechaçando as demais variedades como manifestações de inferioridade mental, é um ato de violência simbólica e mutilação cultural inaceitável.

Outro aspecto que chama atenção é o desconhecimento que predomina na sociedade sobre o ensino de língua portuguesa. Já há alguns anos que os livros didáticos contemplam a questão da variação linguística, e muitas escolas têm adotado essa visão mais pluralista e democrática de ensino de língua portuguesa com resultados muito positivos. Portanto, antes que se diga que a distribuição do livro é mais um ato de populismo do governo do PT, deve-se esclarecer que essa visão remonta ao governo FHC, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1997, que já diziam que “a imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre ‘o que se deve e o que não se deve falar e escrever’, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua” e alertavam que “o problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença”.

Portanto, só a ignorância ou a má-fé podem explicar as manifestações de indignação e revolta que beiram a histeria, diante da distribuição de um livro tão pertinente, através do sistema democrático e republicano do Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Diante disso, importa saber quais são as razões mais profundas dessas reações. Em primeiro lugar, a língua ocupa um posição sui generis na estrutura social. Em outras áreas do comportamento, as leis se seguem às práticas sociais. Na língua, ao contrário, as disposições governamentais, como no caso dos PCNs, estão muito à frente da visão dominante na sociedade, que é no geral dogmática e cheia de mitificações.

O linguista norte-americano William Labov fala do mito da Idade do Ouro, no qual as pessoas tendem a acreditar que a língua atingiu sua perfeição no passado e desde então só se tem deteriorado, e se afligem com as inovações que a cada dia ameaçam mais e mais a integridade do idioma, sendo as mais perigosas as violações perpetradas pela “gente inculta”. Porém, não se conhece uma única língua cujo funcionamento tenha sido comprometido pelas mudanças que sofreu ao longo de seu devir histórico. As mudanças que afetaram o chamado latim vulgar da plebe romana deram origem ao português de Camões, ao espanhol de Cervantes e ao francês de Flaubert. E as “deteriorações” sofridas pela língua portuguesa desde o tempo de Camões não impediram que Pessoa escrevesse sua magistral obra poética. Além do que, muitos males que afligem hoje a língua, para a decepção de muitos, não constituem grande novidade. Os puristas ficam horrorizados com a linguagem desleixada da Internet, impregnada de abreviaturas. Pois as abreviaturas abundam nas inscrições romanas e nos manuscritos medievais.

Costuma-se correlacionar também complexidade gramatical com grau de civilização. Porém, muitas línguas indígenas brasileiras exibem uma morfologia muito mais complexa, inclusive marcando certas categorias gramaticais, como a evidencialidade (que informa a fonte de conhecimento do evento verbalizado), absolutamente ausentes na gramática das línguas europeias. Já muitas línguas africanas, em sua maioria ágrafas (sem escrita), exibem um sistema morfológico de classificação nominal extremamente complexo. E algumas línguas da Melanésia, de comunidades tribais, têm mais de cem formas pronominais, contra algumas poucas dezenas das principais línguas europeias, que têm mais de mil anos de tradição escrita. Ou seja, complexidade gramatical não tem qualquer correlação com grau de civilização. Nem se pode pensar que complexidade gramatical implica maior poder de expressão da língua.

Outro grande mito é o da ameaça à unidade linguística: se não houver uma rígida uniformização, a unidade da língua se perde; se o caos da variação linguística não for detido, a comunicação verbal ficará irremediavelmente comprometida. Ao contrário, a heterogeneidade da língua é que garante a sua unidade em uma comunidade socialmente estratificada e culturalmente diversa. É a flexibilidade conferida pela variação linguística que permite a uma língua funcionar tanto na feira livre quanto nos tribunais de justiça. Se fosse um código monolítico e inflexível, como sugerem os puristas, a mesma língua não poderia funcionar em ambientes tão diversos, o que levaria inexoravelmente à sua fragmentação.

Impressiona o nível de ignorância que se observa em pleno século XXI em relação à língua. Qualquer pessoa minimamente informada já ouviu falar de Freud, Lévi-Strauss e Max Weber, tem alguma ideia sobre o que seja o Complexo de Édipo e o Tabu do Incesto e não ousa falar em raças superiores e inferiores, ou que um criminoso possa ser reconhecido pelo formato do seu crânio, mas fala com naturalidade de línguas simples e complexas e se refere a formas linguísticas correntes como aberrações. Aliás, a visão de que a forma superior da língua é aquela dos escritores clássicos é contemporânea do sistema de Ptolomeu, de que a Terra era o centro do Universo e, em torno dela, giravam o sol, os planetas e as estrelas. Ou seja, a Revolução de Copérnico não chegou ainda à língua.

Um exame aprofundado da questão revelará que as motivações históricas para tanto preconceito e mitificação decorrem exatamente papel político crucial que a língua desempenha nas sociedades de classe. Ao longo dos tempos, a língua tem constituído um poderoso instrumento de dominação e de construção da hegemonia das classes dominantes. A construção dos estadosnacionais encontrou na uniformização e homogeneização linguística um dos seus apoios mais eficazes, sobretudo em regimes autoritários e absolutistas. E o preconceito contra as formas de expressão das classes populares constitui um poderoso instrumento de legitimação ideológica da exploração desses segmentos. Na medida em que o preconceito viceja na ignorância, pode-se entender por que é tão importante impedir que uma visão isenta e cientificamente fundamentada da língua tenha uma grande circulação na sociedade.

Em um programa televisivo sobre o polêmico livro, um conhecido jornalista inquiriu uma entrevista alegando que a concordância gramatical seria
imprescindível para o raciocínio lógico. Se fosse assim, os norte-americanos, australianos e ingleses deveriam enfrentar dificuldades significativas, porque o inglês é uma língua praticamente desprovida de concordância nominal e verbal. Ao contrário, a grande maioria dos artigos científicos é escrita na atualidade em
inglês, e as universidades inglesas e norte-americanas figuram entre as melhores do mundo. Em inglês, se diz: I work, you work, he works, we work, you work, they work. Na linguagem popular do Brasil, se diz: eu trabalho, tu trabalha, ele trabalha, nós trabalha, vocês trabalha, eles trabalha. Nas duas variedades linguísticas, só uma pessoa do discurso recebe marca específica, mas o inglês é a língua da globalização e da modernidade, enquanto o português popular do Brasil é língua de gente ignorante, que não sabe votar. Fica evidente que o valor das formas linguísticas não é intrínseco a elas, mas o resultado da avaliação social impingida aos seus usuários.

Ao contrário do que pensa o jornalista, a concordância não é um requisito para o raciocínio lógico. Até porque as regras de concordância são mecanismos gramaticais que não interferem na comunicação verbal, tanto que é indiferente dizer “nós pegamos os peixes” ou “nós pegou os peixe”. A informação veiculada é a mesma. Em função disso, esses mecanismos costumam ser muito afetados em determinados processos históricos como aqueles por que passaram o inglês, o português no Brasil e o francês, que, mesmo com a erosão na oralidade de suas marcas de concordância, não deixou de se tornar a língua de cultura do mundo ocidental no século XIX.

Porém, na recente história política deste país, a concordância teve uma posição de destaque, quando a imprensa conservadora questionava a capacidade do Presidente Lula, invocando, entre outras coisas, os seus “erros de português”. O preconceito linguístico nada mais era do que a expressão de um preconceito mais profundo das elites econômicas que não podiam admitir que um torneiro mecânico ocupasse o cargo de maior mandatário da República. O sucesso e as conquistas alcançadas pelo Governo Lula, tanto no plano interno quanto externo, só vieram a confirmar que, tanto um preconceito quanto outro, não tinham o menor fundamento.

Mas, vale tudo para desqualificar a linguagem popular, até dizer o disparate de que ela “é caótica e sem regras”, como afirmou, há alguns anos, uma jornalista da imprensa conservadora. Desde 1957, com as publicações dos trabalhos do linguista norte-americano Noam Chomsky, sabe-se que a Faculdade da Linguagem é uma propriedade universal da espécie humana, de modo que qualquer frase produzida por um falante de qualquer língua natural, seja ele analfabeto ou erudito, é gerada por um sistema mental de regras tão sofisticado que mesmo o computador mais poderoso já produzido é incapaz de fazer o que qualquer indivíduo faz trivialmente: falar sua língua nativa.

Nesse contexto, é possível compreender o quanto é subversivo (ou seja, transformador) distribuir amplamente um livro didático que reconhece a diversidade linguística e a legitimidade da linguagem popular. É muito revelador o depoimento do eminente gramático Evanildo Bechara, divulgado no portal UOL, na Internet, em 18/05/2011. Numa crítica à orientação dos PCNs, que ele considera um "erro de visão", afirma: “Há uma confusão entre o que se espera de um cientista e de um professor. O cientista estuda a realidade de um objeto para entendê-lo como ele é. Essa atitude não cabe em sala de aula. O indivíduo vai para a escola em busca de ascensão social”. É impressionante que se diga que “não cabe em sala de aula” fornecer elementos para o aluno “compreender [a língua] como [ela] é”. É como dizer que o darwinismo não cabe em sala de aula, devendo o ensino da biologia ser orientado pelos princípios do criacionismo. Acenando com a cenoura da “ascensão social”, Bechara quer limpar o terreno do ensino para os normativistas legislarem arbitrariamente sobre a língua, como têm feito até então. A visão científica da língua, que reconhece a variação e a diversidade linguística como propriedades essenciais de qualquer língua viva, deve ficar hermeticamente confinada aos ambientes científicos. Na escola e na sociedade, deve predominar a visão dogmática e obscurantista de que existe uma única forma de falar e escrever, enquanto as demais devem ser vistas como deteriorações produzidas por mentes inferiores.

Os problemas dessa visão dogmática e discriminatória do ensino de língua portuguesa se agravam com a tensão que existe no país em relação à norma de correção linguística. O linguista Marcos Bagno tem demonstrado que estruturas como “o jogador custou a chutar” e outras que os gramáticos tardicionais e midiáticos, como Pasquale Cipro Neto, afirmam não pertencer à norma culta são recorrentes nos textos de escritores consagrados, como Cecília Meirelles, Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector, ou mesmo de clássicos, como Machado de Assis e José de Alencar. Isso demonstra que, no Brasil, existe um desacordo flagrante entre a norma padrão – modelo ideal de língua usado como critério para a correção linguística – e a norma culta – forma da língua concretamente usada pelas pessoas consideradas cultas, advogados, jornalistas, escritores etc. Ao empregar as duas expressões como sinônimas, Pasquale e os normativistas buscam dar às suas prescrições uma legitimidade que elas não têm, porque se apoiam numa equivalência que está longe de existir.

A tensão entre a norma padrão e a norma culta é normal em qualquer sociedade letrada, na medida em que a norma padrão constitui uma forma fixa e idealizada de língua a partir da tradição literária, enquanto a norma culta, constituída pelas formas linguísticas efetivamente em uso está sempre se renovando. Porém, no Brasil o desacordo entre as duas é grave desde as origens do estado brasileiro. A independência política do Brasil, ocorrida em 1822, desencadeou uma série de manifestações e movimentos nacionalistas, que tinham no índio tupi o grande símbolo da nacionalidade. Contudo, escritores que abraçaram a temática indigenista e nacionalista que tentaram adequar a linguagem portuguesa à nova realidade cultural do Brasil, como José de Alencar, foram alvo de virulentas críticas provenientes do purismo gramatical.

Mais uma vez, a língua se descolou dos demais aspectos da cultura. Se os elementos representativos da brasilidade deveriam ser adotados, derrubando os símbolos da velha ordem colonial, a linguagem brasileira era vista como imprópria e corrompida, devendo continuar a prevalecer a língua da antiga Metrópole portuguesa. A vitória dos puristas representou a vitória de um projeto elitista e excludente na formação do estado brasileiro. E a base racista desse projeto fica clara neste trecho do discurso de Joaquim Nabuco, na sessão de instalação da Academia Brasileira de Letras, em 1897:

A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência e guarda assim melhor o seu idioma; para essa uniformidade de língua escrita devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é mais rápida entre nós; devemos reconhecer que eles são os donos das fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las indo a eles. (...) Nesse ponto tudo devemos empenhar para secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande época (...) Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano ou Garrett e os seus sucessores deixem de ter toda a vassalagem brasileira.

A vassalagem linguística à ex-metropole implicou a adoção do modelo da língua de Portugal na normatização linguística no país, com graves conseqüências, como o generalizado sentimento de insegurança linguística que aflige todos segmentos da sociedade brasileira, mesmo os mais escolarizados. É comum ouvir afirmações do tipo “o português é uma língua complexa”, ou “o brasileiro não sabe falar português”. E não poderia ser diferente porque a tradição gramatical brasileira exige que os brasileiros escrevam, ou até mesmo falem, com a sintaxe portuguesa, o que é impraticável, porque a língua não parou de mudar, tanto em Portugal quanto no Brasil, em um processo que, por vezes, assume direções distintas, ou mesmo contrárias, em cada um dos lados do Oceano Atlântico.

Uma das mais notáveis dessas mudanças foi a violenta redução das vogais átonas da língua em Portugal, fazendo com que os portugueses pronunciem telefone como tlefone, o que confere ao português europeu contemporâneo uma sonoridade, que é menos românica do que germânica, ou mesmo eslava. Já no Brasil pronuncia-se téléfoni ou têlêfoni (consoante a região), tendo ocorrido o inverso: o fortalecimento das vogais pretônicas. Essa mudança acabou por repercutir em outros níveis da estrutura da língua, de modo que em Portugal se generalizou o uso da ênclise, até nos casos em que, na língua clássica, era obrigatório o uso da próclise (e.g., O João disse que feriu-se; Não chegou-se a um acordo), enquanto no Brasil emprega-se normalmente a próclise até nos contextos vedados pela tradição (e.g., Me parece que ela não veio).

Para além da insegurança linguística, a adoção de uma norma adventícia no Brasil produz também verdadeiros absurdos pedagógicos. Toda gramática normativa brasileira tem um capítulo dedicado à colocação pronominal, que se inicia invariavelmente com a afirmação “a colocação normal do pronome átono é a ênclise”; ao que se seguem mais de vinte regras indicando onde se deve usar a próclise (em orações subordinadas, depois de palavras negativas, após alguns advérbios etc). Tal gramática serve a um estudante português, que usa normalmente a ênclise e pode aprender quais são os contextos excepcionais onde a tradição recomenda o uso da próclise, mas não tem a menor serventia para um estudante brasileiro, que já usa normalmente a próclise. Para ter algum valor pedagógico, o texto da gramática brasileira deveria ter a seguinte feição: “a colocação normal do pronome átono no Brasil é a próclise; entretanto, para se adequar à tradição, deve-se evitar essa colocação em início de período e após uma pausa”.

Esses equívocos se exacerbam dentro da visão tradicional que restringe o ensino de língua portuguesa à prescrição do uso de formas anacrônicas, quando o ensino da língua deve ser muito mais amplo que isso, concentrando-se em práticas criativas que capacitem o aluno a produzir e interpretar textos, dominar os diversos gêneros textuais e identificar os mais variados sentidos e valores ideológicos que as produções verbais assumem em cada situação específica; ao que se deve somar uma informação propedêutica acerca da diversidade da língua.

Pode-se entender, assim, porque uma entidade conservadora e anacrônica, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), se juntou às vozes recalcitrantes, criticando o livro de português do MEC em uma nota oficial, na qual afirma: “Todas as feições sociais do nosso idioma constituem objeto de disciplinas científicas, mas bem diferente é a tarefa do professor de língua portuguesa, que espera encontrar no livro didático o respaldo dos usos da língua padrão que ministra a seus discípulos”. Mais uma vez, a ladainha de que
a escola e a sociedade devem ser privadas de uma visão científica (ou seja, realista) da língua, ficando à mercê de toda a arbitrariedade normativista, inclusive aquela que impõe uma norma de correção adventícia e absolutamente estranha à realidade linguística do país.

Fica evidente também que essa virulenta reação ao livro de português do MEC não se justifica como defesa de um ensino mais eficaz de língua portuguesa. Um modelo antiquado, que privilegia a imposição de formas linguísticas adventícias e/ou anacrônicas, está longe de ser o mais eficaz. Não é a correção de “assistir o espetáculo” por “assistir ao espetáculo” que vai fazer o aluno escrever melhor. Um ensino eficaz de língua materna incorpora a bagagem cultural do aluno, promovendo uma ampla prática de leitura e produção de textos nas mais variadas situações de comunicação, desenvolvendo também sua capacidade de reconhecer os diversos sentidos e valores ideológicos que a língua veicula em cada situação. Nesse ensino, é imprescindível promover a consciência acerca da diversidade linguística como reflexo inexorável da variedade cultural. E esta formação cidadã para o respeito à diferença não entra em contradição com o ensino da norma culta, que deve permanecer. O que está em jogo, na verdade, é a opção por um ensino discriminatório e arbitrário, baseado no preconceito e no dogma, ou por um ensino crítico e pluralista, baseado no conhecimento científico acumulado até os dias de hoje, como ocorre na física, na matemática, na geografia, etc. Por que se deve privar os alunos do conhecimento científico da língua, reduzindo a disciplina língua portuguesa a um mero curso de etiqueta gramatical?

Se o projeto purista venceu no século XIX, com as nefastas conseqüências que hoje se descortinam, resta saber se, no limiar do século XXI, a sociedade brasileira perpetuará o velho projeto arbitrário e conservador, ou encampará um projeto democrático e pluralista para o ensino de língua portuguesa, em consonância com que o corre em outros planos da cultura. Será que mais uma vez a língua restará isolada, como terreno do dogma e do preconceito?


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Artigo
Publicação: O Globo
Data: 23/05/2011
Autor: Marcos Bagno é linguista, escritor, tradutor e professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília.


Uma falsa polêmica


A discussão em torno do livro didático "Por uma vida melhor" nos revela, para começar, a patente ignorância que impera nos nossos meios de comunicação a respeito de língua e de ensino de língua. Ignorância porque o tratamento da variação linguística, como fenômeno inerente a toda e qualquer língua humana, está presente no currículo educacional há pelo menos quinze anos, desde que foram publicados, em 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais, na primeira gestão do professor Paulo Renato à frente do Ministério da Educação. Esse dado factual já deixa evidente que a acusação de que "isso é coisa de petistas" que querem "ensinar a falar errado como o Lula" não tem o menor fundamento, a não ser, de novo, a cabal ignorância dos que a pronunciam. Ao fazer tanto alarde em torno de algo que para os educadores é uma prática já consolidada, essa falsa polêmica, na verdade, é mero pretexto para os que se empenham em reunir mais munição para desacreditar o governo da presidente Dilma Rousseff: os mesmos que, amparados pela grande mídia (comprometida até as entranhas com os interesses das elites de um país campeão mundial das desigualdades), tornaram a última campanha presidencial um desfile de mentiras grotescas. Por isso, é melhor procurar em outro canto, porque aqui a "culpa" não é deste governo, mas vem de muito antes.

O mais chocante nesse caso é a facilidade leviana com que muitas pessoas têm abordado a questão. Só de terem ouvido falar do caso, elas se acham suficientemente municiadas para fazer comentários. Muitas deixam evidente que nunca viram a cor do livro didático mencionado e que falam da boca para fora, inspiradas única e exclusivamente em suas crenças e superstições sobre o que é uma língua e o que significa ensiná-la. Dizer que o livro "ensina a falar errado" é uma inverdade sem tamanho. O livro apenas quer fazer o trabalho honesto de apresentar a seus usuários a realidade do português brasileiro em suas múltiplas variedades. Será que vamos ter de excluir dos livros de História toda menção à escravidão porque hoje é "errado" promover o trabalho escravo? Ao abordar a escravidão o livro de História por acaso está "ensinando" alguém a escravizar outros seres humanos?

Muitos bons resultados têm sido obtidos na educação de jovens e adultos quando, como preparação do terreno para ensinar a eles as normas prestigiadas de falar e de escrever, lhes mostramos que seu próprio modo de falar não é absurdo nem ilógico, mas tem uma gramática própria, segue regras tão racionais quanto as que vêm codificadas pela tradição normativa.      Aliás, as regras das variedades populares são, muitas vezes, bem mais racionais do que as regras normatizadas. Criando-se assim um ambiente acolhedor e culturalmente sensível, o aprendizado da tão reverenciada "norma culta" se torna menos traumático do que sempre foi.

O repúdio ao tratamento da variação linguística na sala de aula é, como sempre, o secular repúdio que nossas elites sempre têm manifestado contra tudo o que "vem de baixo" e contra todo esforço de democratização efetiva da nossa sociedade.



Entrevista
Publicação: Portal IG
Data: 23/05/2011
Autor: Ataliba de Castilho, autor da Nova Gramática do Português Brasileiro, lançado em abril deste ano.


Autor de nova gramática diz ser difícil brasileiro seguir regras da língua portuguesa

“É difícil insistir em normas para a língua num país que adora desobedecer a regras”, define Ataliba de Castilho, autor da Nova Gramática do Português Brasileiro, lançado em abril deste ano. Professor titular aposentado da USP e da Unicamp e um dos idealizadores do Museu da Língua Portuguesa, ele diz que os autores do livro didático Por uma vida melhor, que dedica um capítulo ao uso popular da língua, estão empenhados em discutir a amplitude e a criatividade da língua portuguesa, além do conceito de certo e errado estabelecido pela norma culta. O livro é adotado pelo MEC (Ministério da Educação) para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). “As pessoas estavam acostumadas com a ideia de que só há um jeito de falar. Mas agora há a percepção de que a língua é heterogênea e que há vários modos de se dizer a mesma coisa”, afirmou em entrevista ao Poder Online.

Poder Online – Como autor da Nova Gramática do Português Brasileira, como o senhor tem acompanhado as discussões a respeito do livro Por uma vida melhor, adotado pelo MEC para a Educação de Jovens e Adultos (EJA)?

Ataliba de Castilho - Essa discussão foi por um caminho errado, mas sem querer acertou numa outra coisa em que não se estava pensando. A discussão está errada porque o julgamento do livro não leva em conta que ele apresenta as regras de concordância do português padrão, que é o português da escola, e depois mostra como as pessoas aplicam essas regras na variedade popular. Mas o lado positivo é que essa querela colocou na rua um tipo de discussão que tem sido desenvolvida nos últimos vinte anos dentro das universidades e nos órgãos que administram o ensino. Essa discussão tipicamente acadêmica foi tirada dos muros da universidade e jogada na rua.

Poder Online - Em entrevista ao iG, o professor Evanildo Bechara afirmou que, ao lidar com  a questão da variedade popular em sala de aula, está se está tirando o do professor o elemento fundamental da educação: o interesse para aprender mais. Como o papel do professor entra nessa discussão?

Ataliba de Castilho – A questão que se deve levantar agora é: como vamos ensinar o padrão culto da língua a alunos que não vêm apenas da classe média urbana? Os professores de português, e aí o professor Bechara tem toda razão, jamais ensinariam um padrão que não seja de prestígio, que não seja o padrão culto. Ninguém quer que os seus alunos deixem de progredir em suas vidas. E para progredir, isso em qualquer sociedade humana, não só no Brasil, é preciso se conformar à classe de prestígio. Mas quando se transforma o ensino em uma lei geral, é que aparece o problema. Os alunos que não conhecem a variedade culta passaram a ir para a escola. E como agir? O professor faz de conta que não vê aquele aluno, que a língua dele não existe e que tudo o que ele fala está errado? Se agir desse jeito, o professor afastará o aluno do aprendizado. O ideal é que o professor leve os alunos a refletirem sobre os diferentes modos de dizer a mesma coisa. Foi isso que a autora do livro fez.

Poder Online - Como o senhor acha que um professor de escola pública recebe e trabalha com os livros que estimulam os alunos a refletir sobre os diferentes modos de dizer a mesma coisa?

Ataliba de Castilho – Aí colocamos o dedo na ferida. Estamos, de fato, no olho do furacão. Estamos mudando a clientela do ensino fundamental, mas os professores continuam a ser preparados pelas faculdades de letras – preparados entre trinta mil aspas – para não saber como cuidar dessa situação. Ou seja, eles não estão sendo preparados para enfrentar a nova clientela que está nas escolas. E aí surgem muitos equívocos. Mas não se pode condenar os professores de português. É difícil insistir em um conjunto de normas para a língua num país que adora desobedecer todas as regras. Isso desde as autoridades federais, passando pelas estaduais até as municipais. O professor de português entra em confronto com a realidade: na sala de aula, ele diz que é preciso ter certos padrões, levar em conta certas normas e regras, mas no mundo fora da escola o que se é vê é o contrário. Não adianta cair de pau em cima do professor de português porque ele não consegue preparar os seus alunos. É lógico que ele não consegue: quando o professor abre a boca para explicar essas coisas, os alunos começam a rir por dentro. Ou pior: começam a rir por fora mesmo.

Poder Online - Há uma solução que possa auxiliar o professor em sala de aula?

Ataliba de Castilho – A ciência, tanto a pedagogia, quanto a linguística, sabe qual é o caminho. Mas não se consegue aplicar isso em sala de aula por causa do comportamento dos alunos. Um outro problema é que, tradicionalmente, os professores dão respostas para questões que os alunos não fizeram. Isso explica o desinteresse. Mas, ao invés de a aula ser um espaço em que se vai para saber o que é certo e correto, é preciso transformar a aula em um espaço de debate e discussão sobre a língua. Aí, sim, funciona porque, na ciência da linguagem, não há uma única resposta certa. O certo e errado só existe quando se reduz a língua à variante culta. Às vezes penso que os brasileiros foram treinados, por todas as situações históricas, a ser uma gente obediente, não criativa. Uma gente que está acostumada a perguntar se está certo ou errado. Não seria melhor perguntar: eu falei claro, eu escrevi claro?


Artigo
Publicação: Estadão Online
Data: 22/05/2011
Autor: Sírio Possenti
- Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística / Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de questões para analistas de discurso e a Língua na Mídia (parábola).

Analisar e opinar. Sem ler

Bateram duro em um livro com base na leitura de apenas uma das páginas de um dos capítulos

Cesse tudo o que a musa antiga canta / que outro valor mais alto se alevanta (...) dai-me uma fúria grande e sonorosa / e não de agreste avena ou frauta ruda / mas de tuba canora e belicosa (os lusíadas, canto i)

O jornalismo nativo teve uma semana infeliz. Ilustres colunistas e afamados comentaristas bateram duro em um livro, com base na leitura de uma das páginas de um dos capítulos. Houve casos em que nem entrevistado nem entrevistador conheciam o teor da página, mas apenas uma nota que estava circulando (meninos, eu ouvi). Nem por isso se abstiveram de "analisar". Só um exemplo, um conselho e uma advertência foram considerados. E dos retalhos se fez uma leitura enviesada. Se fossem submetidos ao PISA, a classificação do país seria pior do que a que tem sido.

Disseram que o MEC distribuiu um livro que ensina a falar errado; que defende o erro; que alimenta o preconceito contra os que falam certo. Mas o que diz o capítulo?
a) que há diferenças entre língua falada e escrita. É só um fato óbvio. Quem não acredita pode ouvir os próprios críticos do livro em suas intervenções, que estão nos sites (não é uma crítica: eles abonaram a constatação do livro);

b) que cada variedade da língua segue regras diferentes das de outra variedade. O que também é óbvio. Qualquer um pode perceber que os livro, as casa, as garrafa seguem uma regra, um padrão. São regulares: plural marcado só no primeiro elemento. Consta-se ouvindo ou olhando, como se constata que tucanos têm bico desproporcional. Ninguém diz que está errado; todos os tucanos têm bico igual, é seu bico regular, seu bico "certo";

c) que há diferenças entre língua falada e escrita, que não se restringem à gramática, mas atingem a organização do texto (um teste é gravar sua fala, e transcrever; quem pensa que fala como escreve leva sustos);

d) que na fala e na escrita há níveis diferentes: não se escreve nem se fala da mesma maneira com amigos e com autoridades (William Bonner acaba de dizer "vamo lá sortiá a próxima cidade". Houve outros dados notáveis nos estúdios: "onde fica as leis da concordância?" e "a língua é onde nos une"...);

e) deve-se aprender as formas cultas da língua: todo o capítulo insiste na tese (é bem conservador!) e todos os exercícios pedem a conversão de formas faladas ou informais em formas escritas e formais.

O que mais se pode querer de um livro didático? Então, por que a celeuma? Tentarei compreender. Foram três as passagens do texto que causaram a reação. O restante não foi comentado.

Uma questão refere-se ao conceito de regra: quem acha que gramática quer dizer gramática normativa toma o conceito de regra como lei e o de lei como ordem: deve-se falar / escrever assim ou assado; as outras formas são erradas. Mas o conceito de regra / lei, nas ciências (em lingüística, no caso), tem outro sentido: refere-se à regularidade (matéria atrai matéria, verbos novos são da primeira conjugação etc.). Os livro segue uma regra. E uma gramática é conjunto de regras, também descritivas.

Outro problema foi responder "pode" à pergunta se se pode dizer os livro. "Pode" significa possibilidade (pode chover), mas também autorização (pode comer buchada). No livro, "pode" está entre possibilidade e autorização. Foi esta a interpretação que gerou as reações. Além disso, comentaristas leram "pode" como "deve". E disseram que o livro ensina errado, que o errado agora é certo (a tese ganhou a defesa de José Sarney!).

A terceira passagem atacada foi a advertência de que quem diz os livro pode ser vítima de preconceito. Achou-se que não há preconceito linguístico. Mas a celeuma mostra que há, e está vivíssimo. Uma prova foi a associação da variedade popular ao risco do fim da comunicação. Li que o português "correto" é efeito da evolução (pobre Darwin!). Ouvi que a escrita (!) separa os homens dos animais!

Esse discurso quer dizer que "eles" não pensam direito. O curioso é que os comentaristas são todos letrados, falam várias línguas. Mas não se dão conta de que um inglês diz THE BOOKS, e que a falta de um plural não constitui problema; que um francês diz LE LIVR(e), para les livres, e que a falta dos "ss" não impede a veiculação do sentido "mais de um".
Mas pior que a negação do preconceito foi a leitura segundo a qual o livro estimula o preconceito contra os que falam ""certo"", discurso digno de Bolsonaro, embora em outro domínio: foi o nobre deputado que entendeu a defesa dos homossexuais como um ataque aos heterossexuais. Um gênio da hermenêutica!

Mas há um problema ainda mais grave do que todos esses. De fato, ele é sua origem. Eles não defendem a gramática. Nossos "intelectuais" não conhecem gramáticas. Nunca as leram inteiras, incluindo as notas e citações, e considerando as discordâncias entre elas (acham que as adjetivas explicativas "vêm" entre vírgulas!). Eles conhecem manuais do tipo "não erre" (da redação etc.), que são úteis (tenho vários, para usar, mas também para rir um pouco) como ferramentas de trabalho em certos ambientes, em especial para defensores da norma culta que não a dominam.

Mas o suprassumo foi a insinuação de que o livro seria a defesa da fala "errada" de Lula. Ora, este tipo de estudo se faz há pelo menos 250 anos, desde as gramáticas históricas. Alguns acharam que estas posições são de esquerda. Não são! Os "esquerdistas" detestam os estudos variacionistas. Consideram-nos funcionalistas, vale dizer, burgueses. Por que defendê-los, então? Porque permitem que os estudos de língua cheguem pelo menos à época baconiana (Bacon é o nome do autor do Novum Organon, um cara do século XVI. Não é toucinho defumado).

Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística / Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de questões para analistas de discurso e a Língua na Mídia (parábola).



Artigo
Publicação: O Globo
Data: 21/05/2011
Autor: José Miguel Wisnik -

José Miguel Soares Wisnik é professor de Teoria Literária na USP.

“Dona Norma”

O imbróglio da vez é a discussão sobre o manual de ensino da língua portuguesa distribuído pelo MEC, chamado "Para uma vida melhor", da autoria de Heloisa Ramos. Li na imprensa, vi nos blogs e ouvi no rádio do carro vozes, desde sentenciosas a sardônicas e sarcásticas, dizendo que se tratava de uma descarada proposta de ensino do português pelo método invertido, preconizando o erro de concordância, o desvio sintático e o assalto à gramática. Criticava-se a adoção do "lulês" como idioma oficial da escola brasileira. Leio o capítulo do livro em questão e vejo, no entanto, que a autora se dedica nele, a maior parte do tempo, a mostrar a importância da pontuação, da concordância e da boa ortografia na língua escrita. Onde está o erro?

Bater em teclas equivocadas é quase uma praxe do debate cultural corrente, com ou sem rendimento político imediato. Na verdade, o livro assume, para efeitos pedagógicos, uma noção que se tornou trivial para estudantes de Letras desde pelo menos quando eu entrei no curso, em 1967. Os estudos linguísticos mostravam que a prática das línguas é sujeita a muitas variantes regionais, sociais, e que a chamada "norma culta", preconizada pelos gramáticos, é uma entre outras variantes da língua, não necessariamente a mais, ou a única "correta". Desse ponto de vista, científico e não normativo, procura-se contemplar a multiplicidade das falas, reconhecidas na sua eficácia comunicativa, sem privilegiar um padrão verbal ditado pelos segmentos letrados como único a ser seguido.

Discutirei adiante algumas consequências pedagógicas disso. Mas a que me parece inquestionável, e adotada com propriedade no livro de Heloisa Ramos, é a importância de não se estigmatizar os usos populares da língua, reconhecendo em vez disso a validade do seu funcionamento. É nessa hora que ela dava como exemplo a famigerada frase "Nós pega o peixe", ou, então, "Os menino pega o peixe". A autora não diz que é assim que se deve escrever. Mas também não deprecia a expressão: preconceitos à parte, é preciso reconhecer que no seu uso comum a frase funciona, porque a marca do plural no pronome ou no artigo é suficiente para indicar que a ação é exercida por um conjunto de meninos, e não por um só. Desse ponto de vista, eminentemente pragmático, nenhum erro.

A seguir, no mesmo espírito pragmático, o livro afirma claramente a importância de que a escola promova o domínio da norma culta, ligado à língua escrita, justificado pela sua necessidade em situações específicas (aqui virá a minha discordância). Dá exemplos de como corrigir um texto mal escrito, mostrando, dentro dos melhores critérios, como ele deve ganhar coesão interna, articulação sintática, clareza nos seus recortes (pontuação) e seguir os critérios ortográficos.

A grita contra o livro, por aqueles que, imagino, não o leram, é uma estridente confirmação, em primeiro lugar, daquilo que o próprio livro diz e, em segundo lugar, daquilo que ele não diz, mas que deveria dizer.

Afirmar cegamente, com alarme e com alarde, que o livro é um atentado, tornado oficial, à língua portuguesa, pelo respeito localizado que ele dá às variantes populares de fala que não usam extensivamente as flexões, isto é, as normas letradas de concordância, é um sintoma ignorante e disseminado de que se concebe a língua como um instrumento de prestígio, de privilégio e de poder.

Mais que isso, a defesa exaltada e capciosa da suposta correção linguística, desconsiderando todo o resto, é uma desbragada demonstração de ignorância em nome da denúncia da sua perpetuação. Culta, neste caso, é de uma incultura cavalar. O tom desinformado e espalhafatoso da denúncia encobre, mal, aquilo de que ele tenta fugir: o nosso analfabetismo crônico, difuso, contagiante.

Hélio Schwartsman, em compensação, assim como Cristovão Tezza no programa de Monica Waldvogel, disseram coisas importantes e equilibradas. Hélio lembra que a passagem do latim às línguas românicas, o português incluído, só se deu graças às províncias que passaram a falar um latim tecnicamente estropiado, sem as suas declinações clássicas. Sem essa dinâmica e o correspondente afrouxamento flexional, estaríamos até hoje falando latim e usando as cinco declinações.

O inglês, por sua vez, é muito menos flexional que o português. A frase "the boys get the fish", por exemplo, que funciona perfeitamente para marcar o plural, é, do ponto de vista estrutural, uma espécie de "nós pega o peixe" institucionalizado.

O horizonte do pragmatismo é o que me parece estreito, no entanto, no livro do MEC. O domínio da norma culta é justificado, nele, para que o falante tenha "mais uma variedade" linguística à sua disposição, para que não sofra preconceito, para que se desincumba em situações formais que assim o exigem. É muito pouco. A norma culta não é nem um mero adereço de classe nem apenas uma variedade à disposição do aluno para ele usar diante de autoridades ou para preencher requerimentos. A educação pela língua não pode ser pensada apenas como um instrumento de adaptação às contingências. A escrita é um equipamento universal de apuro lógico, que está embutido na estrutura de uma língua dada. Mergulhar nela e nas exigências que lhe são inerentes é um processo de autoconsciência e um salto mental de grandes consequências.

Não se pode fazer por menos. Além de "Para uma vida melhor", tem que ser também "Para uma vida maior". Bater em teclas equivocadas é quase uma praxe do debate cultural corrente.

José Miguel Soares Wisnik é professor de Teoria Literária na USP.


Artigo
Publicação: O Globo
Data: 20/05/11
Autor: Miguel Conde
- Miguel Conde é jornalista.

“Um debate estridente”

Ninguém precisa ir à escola para aprender o uso popular da língua. O ensino de português ou de qualquer outro idioma num ambiente escolar tem por objetivo a formação de cidadãos capazes de utilizar a língua de acordo com as regras gramaticais que definem a chamada norma culta.

Esse aprendizado está diretamente ligado às chances que uma pessoa tem de melhorar de vida, pois o domínio da norma culta é uma condição de acesso ao mercado de trabalho e de exercício pleno da cidadania.

Embora existam situações, informais, em que o uso popular da língua pode ser aceito, o conhecimento da norma culta é indispensável à comunicação em inúmeras instâncias da vida em sociedade. A incapacidade de utilizá-la tem por consequência, na prática, a exclusão social.

Em linhas gerais, é isso que defende o livro “Por uma vida melhor”, da professora Heloísa Ramos, distribuído pelo Ministério da Educação a 4.236 escolas do país e destinado a cursos de educação de jovens e adultos. Acusada nos últimos dias de estimular o uso incorreto de português — transformando “a ortografia em pornografia gramatical”, nas palavras do senador Álvaro Dias (PSDB-PR), cometendo “um crime contra os jovens”, segundo a procuradora da República Janice Ascari —, a obra está agora disponível para leitura no site da sua editora, o que permite contrastar as críticas que lhe vêm sendo dirigidas àquilo que de fato consta do texto. Dada a estridência com que se tem desenrolado a discussão, pode ser útil, antes de tomar parte na briga, atentar para alguns trechos do livro até o momento ignorados nas citações que têm sido feitas.

Em seu primeiro capítulo, de onde foi extraído o trecho que supostamente autoriza o erro, o livro afirma que a língua portuguesa “apresenta muitas variantes”, regionais e sociais. A variante popular, afirma, pode ser adequada a situações informais, mas a norma culta é necessária para o uso da língua em situações formais: “Quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta.” Intitulado “Falar não é escrever”, o capítulo diz que saber falar português não é o mesmo que dominar suas regras, e acrescenta: “A escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes, para que eles tenham mais uma variedade à sua disposição, a fim de empregá-la quando for necessário.”

O trecho mais mencionado na discussão tem sido citado de maneira incompleta. A leitura da passagem na íntegra mostra que a noção de preconceito linguístico, uma forma enviesada de se referir ao zelo pela correção gramatical, não é usada para validar o erro, mas para enfatizar que aquilo que pode ser aceito numa situação informal não será aceito em outras onde a norma culta regula a comunicação: “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar os livro?’ Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião. Existe outro tipo de concordância: a que envolve o verbo. Observe seu funcionamento: na norma culta, o verbo concorda, ao mesmo tempo, em número (singular/plural) e em pessoa (1/2/3) com o ser envolvido na ação que ele indica.”

A esse trecho seguem-se exercícios de acentuação, separação silábica, uso de pronomes e correção de formulações com erros gramaticais, que devem ser reescritas pelo aluno de acordo com o padrão da norma culta.

É sem dúvida possível questionar certas colocações do livro, em particular o uso infeliz da expressão “preconceito linguístico”, além de termos politicamente carregados como “classe dominante”. Certamente há maneiras melhores e mais objetivas de transmitir a uma turma de ensino fundamental o conhecimento de que a língua é um sistema dinâmico, que se altera com o tempo, e que a norma culta é uma convenção social estabelecida para regular o uso das palavras em meio a essas variações. Para que esse debate importante possa acontecer, no entanto, é indispensável primeiro conhecer aquilo que pretendemos discutir.

Miguel Conde é jornalista.



Nota
Publicação: Site da Associação Brasileira de Lingüística (Abralin)
Data: 20/05/2011
Autora: Maria José Foltran, Presidente da Abralin

Nota da Associação Brasileira de Linguística

Prezados associados,
A Abralin comunica que se pronunciará em relação à polêmica do livro didático. Ainda hoje, encaminharemos a várias assessorias de imprensa um posicionamento. Estamos também negociando com um jornal de veiculação nacional a publicação de uma matéria paga. Adiantamos, abaixo, aos nossos associados, o texto que resume o posicionamento da Abralin. Entendemos que estamos assim retratando adequadamente o pensamento dos linguistas. Por questões práticas, esse texto ainda pode sofrer cortes.

Língua e Ignorância

Nas duas últimas semanas, o Brasil acompanhou uma discussão a respeito do livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Diante de posicionamentos virulentos externados na mídia, alguns até histéricos, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA - ABRALIN - vê a necessidade de vir a público manifestar-se a respeito, no sentido de endossar o posicionamento dos linguistas, pouco ouvidos até o momento.

Curiosamente é de se estranhar esse procedimento, uma vez que seria de se esperar que estes fossem os primeiros a serem consultados em virtude da sua expertise. Para além disso, ainda, foram muito mal interpretados e mal lidos.

O fato que, inicialmente, chama a atenção foi que os críticos não tiveram sequer o cuidado de analisar o livro em questão mais atentamente. As críticas se pautaram sempre nas cinco ou seis linhas largamente citadas. Vale notar que o livro acata orientações dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) em relação à concepção de língua/linguagem, orientações que já estão em andamento há mais de uma década. Além disso, não somente este, mas outros livros didáticos englobam a discussão da variação lingüística com o intuito de ressaltar o papel e a importância da norma culta no mundo letrado. Portanto, em nenhum momento houve ou há a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada. Ao contrário, entende-se que esse é o papel da escola, garantir o domínio da norma culta para o acesso efetivo aos bens culturais, ou seja, garantir o pleno exercício da cidadania. Esta é a única razão que justifica a existência de uma disciplina que ensine língua portuguesa a falantes nativos de português.   

A linguística se constituiu como ciência há mais de um século. Como qualquer outra ciência, não trabalha com a dicotomia certo/errado. Independentemente da inegável repercussão política que isso possa ter, esse é o posicionamento científico. Esse trabalho investigativo permitiu aos linguistas elaborar outras constatações que constituem hoje material essencial para a descrição e explicação de qualquer língua humana.

Uma dessas constatações é o fato de que as línguas mudam no tempo, independentemente do nível de letramento de seus falantes, do avanço econômico e tecnológico de seu povo, do poder mais ou menos repressivo das Instituições. As línguas mudam. Isso não significa que ficam melhores ou piores. Elas simplesmente mudam. Formas linguísticas podem perder ou ganhar prestígio, podem desaparecer, novas formas podem ser criadas. Isso sempre foi assim. Podemos ressaltar que muitos dos usos hoje tão cultuados pelos puristas originaram-se do modo de falar de uma forma alegadamente inferior do Latim: exemplificando, as formas “noscum” e “voscum”, estigmatizadas por volta do século III, por fazerem parte do chamado “latim vulgar”, originaram respectivamente as formas “conosco” e “convosco”.

Outra constatação que merece destaque é o fato de que as línguas variam num mesmo tempo, ou seja, qualquer língua (qualquer uma!) apresenta variedades que são deflagradas por fatores já bastante estudados, como as diferenças geográficas, sociais, etárias, dentre muitas outras. Por manter um posicionamento científico, a linguística não faz juízos de valor acerca dessas variedades, simplesmente as descreve. No entanto, os linguistas, pela sua experiência como cidadãos, sabem e divulgam isso amplamente, já desde o final da década de sessenta do século passado, que essas variedades podem ter maior ou menor prestígio. O prestígio das formas linguísticas está sempre relacionado ao prestígio que têm seus falantes nos diferentes estratos sociais. Por esse motivo, sabe-se que o desconhecimento da norma de prestígio, ou norma culta, pode limitar a ascensão social. Essa constatação fundamenta o posicionamento da linguística sobre o ensino da língua materna.

Independentemente da questão didático-pedagógica, a linguística demonstra que não há nenhum caos linguístico (há sempre regras reguladoras desses usos), que nenhuma língua já foi ou pode ser “corrompida” ou “assassinada”, que nenhuma língua fica ameaçada quando faz empréstimos, etc. Independentemente da variedade que usa, qualquer falante fala segundo regras gramaticais estritas (a ampliação da noção de gramática também foi uma conquista científica). Os falantes do português brasileiro podem fazer o plural de “o livro” de duas maneiras: uma formal: os livros; outra informal: os livro. Mas certamente nunca se ouviu ninguém dizer “o livros”. Assim também, de modo bastante generalizado, não se pronuncia mais o “r” final de verbos no infinitivo, mas não se deixa de pronunciar (não de forma generalizada, pelo menos) o “r” final de substantivos. Qualquer falante, culto ou não, pode dizer (e diz) “vou comprá” para “comprar”, mas apenas algumas variedades diriam 'dô' para 'dor'. Estas últimas são estigmatizadas socialmente, porque remetem a falantes de baixa extração social ou de pouca escolaridade. No entanto, a variação da supressão do final do infinitivo é bastante corriqueira e não marcada socialmente. Demonstra-se, assim, que falamos obedecendo a regras. A escola precisa estar atenta a esse fato, porque precisa ensinar que, apesar de falarmos “vou comprá” precisamos escrever “vou comprar”. E a linguística ao descrever esses fenômenos ajuda a entender melhor o funcionamento das línguas o que deve repercutir no processo de ensino.

Por outro lado, entendemos que o ensino de língua materna não tem sido bem sucedido, mas isso não se deve às questões apontadas. Esse é um tópico que demandaria uma outra discussão muito mais profunda, que não cabe aqui.

Por fim, é importante esclarecer que o uso de formas linguísticas de menor prestígio não é indício de ignorância ou de qualquer outro atributo que queiramos impingir aos que falam desse ou daquele modo. A ignorância não está ligada às formas de falar ou ao nível de letramento. Aliás, pudemos comprovar isso por meio desse debate que se instaurou em relação ao ensino de língua e à variedade linguística.



Nota
Publicação: Site da Associação Brasileira de Linguística Aplicada do Brasil (Alab)
Data: 20/05/2011
Autora: Paula Tatianne Carréra Szundy, Presidente da ALAB, biênio UFRJ 2009-2011

Polêmica em relação a erros gramaticais em livro didático de Língua Portuguesa revela incompreensão da imprensa e população sobre a atuação do estudioso da linguagem

A divulgação da lista de obras aprovadas pelo Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD) para o ensino da língua portuguesa na Educação de Jovens e Adultos (EJA) provocou verdadeiro celeuma na imprensa e comunidade acadêmica sobre a aprovação de obras com “erros” de língua portuguesa. Frases como “Nós pega o peixe”, “os menino pega o peixe”, “Mas eu posso falar os livro” e outras que transgridem a norma culta, publicadas no livro Por uma Vida Melhor, aprovado pelo PNLD e distribuído em escolas da rede pública pelo MEC, causaram a indignação de jornalistas, professores de língua portuguesa e membros da Academia Brasileira de Letras.

O grande incômodo, relacionado ao fato do livro relativizar o uso da norma culta, substituindo a concepção de “certo e errado” por “adequado e inadequado”, retrata a incompreensão da imprensa e população em relação ao escopo de atuação de pesquisadores que se ocupam em compreender e analisar os usos situados da linguagem.

A polêmica em torno deste relativismo, assim como a interpretação deturpada de pesquisas na área da linguagem, não é nova. Em novembro de 2001, na reportagem de capa da Revista Veja, intitulada “Falar e escrever bem, eis a questão”, Pasquale Cipro Neto dirigiu-se ofensivamente a pesquisadores da área de linguagem que defendem a integração de outras variedades no ensino de língua portuguesa como uma corrente relativista e esquerdistas de meia pataca, idealizadores de “tudo o que é popular – inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema, do "povo" (Fonte, Veja Online, consultada em 20.05.2011).

Mais de uma década após a publicação dos PCN e da instituição do PNLD de Língua Portuguesa, ambos frutos das pesquisas destes estudiosos relativistas, a imprensa e população continua a interpretar de forma deturpada a proposta de ensino defendida nas diretrizes curriculares e transpostas didaticamente nas coleções aprovadas no PNLD.

Tal deturpação ressalta um problema sério de leitura, muito provavelmente decorrente da prática cristalizada historicamente de se ensinar a gramática pela gramática, de forma abstrata e não situada. Pois, ao situar e inscrever as frases incorretas responsáveis por tanto desconforto no contexto concreto em que foram enunciadas, fica clara a intenção da autora de mostrar que precisamos adequar a linguagem ao contexto e optar pela variante mais adequada à situação de comunicação, preceito básico para participação nas diversas práticas letradas em que nos engajamos no mundo social.

Assim, ao contrário de contribuir para uma agenda partidária de manutenção da ignorância, acusação levianamente imputada ao livro e ao PNLD (e, portanto, aos estudiosos da linguagem), os “erros” em questão, se interpretados contextualizadamente e explorados de forma interessante em sala de aula, contribuem para o desenvolvimento da consciência linguística, mostrando que apesar de todas as variantes serem aceitáveis, o domínio da norma culta é fundamental para efetiva participação nas diversas atividades sociais de mais prestígio.

Se, portanto, situarmos a linguagem, não há razão para polêmica ou desconforto e a crítica daqueles preocupados em garantir o ensino da norma culta torna-se absolutamente nula, sem sentido. O niilismo desta crítica está claramente estampado no enunciado de Pasquale, citado naquela reportagem de uma década: "Ninguém defende que o sujeito comece a usar o português castiço para discutir futebol com os amigos no bar", irrita-se Pasquale. "Falar bem significa ser poliglota dentro da própria língua. Saber utilizar o registro apropriado em

qualquer situação. É preciso dar a todos a chance de conhecer a norma culta, pois é ela que vai contar nas situações decisivas, como uma entrevista para um novo trabalho". (Fonte, Veja Online, consultada em 20.05.2011)

A relativização veementemente criticada parece, por fim, ter sido tomada como verdade no interior do mesmo enunciado. Dez anos depois vemos em livros didáticos a possibilidade de formar poliglotas na língua materna. Isso é, sem dúvida, um progresso. Resta ainda melhorar as leituras da população sobre os estudos situados da linguagem.

Neste sentido, a Associação de Linguística Aplicada do Brasil, expressa seu repudio a atitude autoritária e uníssona de vários veículos da imprensa em relação à concepção deturpada de “erro” e convida seus membros a se posicionarem nestes veículos de forma mais efetiva e veemente sobre questões relacionadas a ensino de línguas e políticas linguísticas, construindo leituras mais situadas, persuasivas e plurilíngues.

Indicamos abaixo o link para a notícia citada de 2001, assim como outros artigos e vídeos com o posicionamento de estudiosos da linguagem acerca da polêmica com os livros didáticos de LM.

Paula Tatianne Carréra Szundy
Presidente da ALAB, biênio UFRJ 2009-2011



Artigo
Publicação: Site Terra Magazine
Data: 19/05/2011
Autor: Sírio Possenti
- Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística / Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de questões para analistas de discurso e a Língua na Mídia (parábola).

Aceitam tudo

De vez em quando, alguém diz que lingüistas "aceitam" tudo (isto é, que acham certa qualquer construção). Um comentário semelhante foi postado na semana passada. Achei que seria uma boa oportunidade para tentar esclarecer de novo o que fazem os linguistas.

Mas a razão para tentar ser claro não tem mais a ver apenas com aquele comentário. Surgiu uma celeuma causada por notas, comentários, entrevistas etc. a propósito de um livro de português que o MEC aprovou e que ensinaria que é certo dizer Os livro. Perguntado no espaço dos comentários, quando fiquei sabendo da questão, disse que não acreditava na matéria do IG, primeira fonte do debate. Depois tive acesso à indigitada página, no mesmo IG, e constatei que todos os que a leram a leram errado. Mas aposto que muitos a comentaram sem ler.

Vou tratar do tal "aceitam tudo", que vale também para o caso do livro.

Primeiro: duvido que alguém encontre esta afirmação em qualquer texto de linguística. É uma avaliação simplificada, na verdade, um simulacro, da posição dos linguistas em relação a um dos tópicos de seus estudos - a questão da variação ou da diversidade interna de qualquer língua. Vale a pena insistir: de qualquer língua.

Segundo: "aceitar" é um termo completamente sem sentido quando se trata de pesquisa. Imaginem o ridículo que seria perguntar a um químico se ele aceita que o oxigênio queime, a um físico se aceita a gravitação ou a fissão, a um ornitólogo se ele aceita que um tucano tenha bico tão desproporcional, a um botânico se ele aceita o cheiro da jaca, ou mesmo a um linguista se ele aceita que o inglês não tenha gênero nem subjuntivo e que o latim não tivesse artigo definido.

Não só não se pergunta se eles "aceitam", como também não se pergunta se isso tudo está certo. Como se sabe, houve época em que dizer que a Terra gira ao redor do sol dava fogueira. Semmelveis foi escorraçado pelos médicos que mandavam em Viena porque disse que todos deveriam lavar as mãos antes de certos procedimentos (por exemplo, quem viesse de uma autópsia e fosse verificar o grau de dilatação de uma parturiente). Não faltou quem dissesse "quem é ele para mandar a gente lavar as mãos?"

Ou seja: não se trata de aceitar ou de não aceitar nem de achar ou de não achar correto que as pessoas digam os livro. Acabo de sair de uma fila de supermercado e ouvi duas lata, dez real, três quilo a dar com pau. Eu deveria mandar esses consumidores calar a boca? Ora! Estávamos num caixa de supermercado, todos de bermuda e chinelo! Não era um congresso científico, nem um julgamento do Supremo!

Um linguista simplesmente "anota" os dados e tenta encontrar uma regra, isto é, uma regularidade, uma lei (não uma ordem, um mandato).

O caso é manjado: nesta variedade do português, só há marca de plural no elemento que precede o nome - artigo ou numeral (os livro, duas lata, dez real, três quilo). Se houver mais de dois elementos, a complexidade pode ser maior (meus dez livro, os meus livro verde etc.). O nome permanece invariável. O linguista vê isso, constata isso. Não só na fila do supermercado, mas também em documentos da Torre do Tombo anteriores a Camões. Portanto, mesmo na língua escrita dos sábios de antanho.

O linguista também constata the books no inglês, isto é, que não há marca de plural no artigo, só no nome, como se o inglês fosse uma espécie de avesso do português informal ou popular. O linguista aceita isso? Ora, ele não tem alternativa! É um dado, é um fato, como a combustão, a gravitação, o bico do tucano ou as marés. O linguista diz que a escola deve ensinar formas como os livro? Esse é outro departamento, ao qual volto logo.

Faço uma digressão para dar um exemplo de regra, porque sei que é um conceito problemático. Se dizemos "as cargas", a primeira sílaba desta sequência é "as". O "s" final é surdo (as cordas vocais não vibram para produzir o "s"). Se dizemos "as gatas", a primeira sílaba é a "mesma", mas nós pronunciamos "az" - com as cordas vocais vibrando para produzir o "z".     Por que dizemos um "z" neste caso? Porque a primeira consoante de "gatas" é sonora, e, por isso, a consoante que a antecede também se sonoriza. Não acredita? Vá a um laboratório e faça um teste. Ou, o que é mais barato, ponha os dedos na sua garganta, diga "as gatas" e perceberá a vibração. Tem mais: se dizemos "as asas", não só dizemos um "z" no final de "as", como também reordenamos as sílabas: dizemos as.ga.tas e as.ca.sas, mas dizemos a.sa.sas ("as" se dividiu, porque o "a" da palavra seguinte puxou o "s/z" para si). Dividimos "asas" em "a.sas", mas dividimos "as asas" em a.sa.sas.

Volto ao tema do linguista que aceitaria tudo! Para quem só teve aula de certo / errado e acha que isso é tudo, especialmente se não tiver nenhuma formação histórica que lhe permitiria saber que o certo de agora pode ter sido o errado de antes, pode ser difícil entender que o trabalho do linguista é completamente diferente do trabalho do professor de português.

Não "aceitar" construções como as acima mencionadas ou mesmo algumas mais "chocantes" é, para um linguista, o que seria para um botânico não "aceitar" uma gramínea. O que não significa que o botânico paste.

Proponho o seguinte experimento mental: suponha que um descendente seu nasça no ano 2500. Suponha que o português culto de então inclua formas como "A casa que eu moro nela mais os dois armário vale 300 cabral" (acho que não será o caso, mas é só um experimento). Seu descendente nunca saberá que fala uma língua errada. Saberá, talvez (se estudar mais do que você), que um ancestral dele falava formas arcaicas do português, como 300 cabrais.

Outro tema: o linguista diz que a escola deve ensinar a dizer Os livro? Não. Nenhum linguista propõe isso em lugar nenhum (desafio os que têm opinião contrária a fornecer uma referência). Aliás, isso não foi dito no tal livro, embora todos os comentaristas digam que leram isso.

O linguista não propõe isso por duas razões: a) as pessoas já sabem falar os livro, não precisam ser ensinadas (observe-se que ninguém falao livros, o que não é banal); b) ele acha - e nisso tem razão - que é mais fácil que alguém aprenda os livros se lhe dizem que há duas formas de falar do que se lhe dizem que ele é burro e não sabe nem falar, que fala tudo errado. Há muitos relatos de experiências bem sucedidas porque adotaram uma postura diferente em relação à fala dos alunos.

Enfim, cada campo tem seus Bolsonaros. Merecidos ou não.

PS 1 - todos os comentaristas (colunistas de jornais, de blogs e de TVs) que eu ouvi leram errado uma página (sim, era só UMA página!) do livro que deu origem à celeuma na semana passada. Minha pergunta é: se eles defendem a língua culta como meio de comunicação, como explicam que leram tão mal um texto escrito em língua culta? É no teste PISA que o Brasil, sempre tem fracassado, não é? Pois é, este foi um teste de leitura. Nosso jornalismo seria reprovado.

PS 2 - Alexandre Garcia começou um comentário irado sobre o livro em questão assim, no Bom Dia, Brasil de terça-feira: "quando eu TAVA na escola...". Uma carta de leitor que criticava a forma "os livro" dizia "ensinam os alunos DE que se pode falar errado". Uma professora entrevistada que criticou a doutrina do livro disse "a língua é ONDE nos une" e Monforte perguntou "Onde FICA as leis de concordância?". Ou seja: eles abonaram a tese do livro que estavam criticando. Só que, provavelmente, acham que falam certinho! Não se dão conta do que acontece com a língua DELES mesmos!!

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.



Artigo
Publicação: Gazeta do Povo (PR)
Data: 19/05/2011
Autor: Carlos Alberto Faraco
- Carlos Alberto Faraco, linguista, foi professor de português e reitor da UFPR.

Polêmica vazia

O desvelamento da nossa cara linguística tem incomodado profundamente certa intelec¬¬¬tuali¬¬¬dade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão
Corre pela imprensa e pela internet uma polêmica sobre o livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático (do MEC) para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). Segundo seus críticos, o livro, ao abordar a variação linguística, estaria fazendo a apologia do “erro” de português e desvalorizando, assim, o domínio da chamada norma culta.

O tom geral é de escândalo. A polêmica, no entanto, não tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a está sustentando pelo lado do escândalo, leu o que não está escrito, está atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorância sobre a história e a realidade social e linguística do Brasil.

Pior ainda: jornalistas respeitáveis e até mesmo um conhecido gramático manifestam indignação claramente apenas por ouvir dizer e não com base numa análise criteriosa do material. Não podemos senão lamentar essa irresponsável atitude de pessoas que têm a obrigação, ao ocupar o espaço público, de seguir comezinhos princípios éticos.

Se o fizessem, veriam facilmente que os autores do livro apenas seguem o que recomenda o bom senso e a boa pedagogia da língua. O assunto é a concordância verbal e nominal – que, como sabemos – se realiza, no português do Brasil, de modo diferente de variedade para variedade da língua. Há significativas diferenças entre as variedades ditas populares e as variedades ditas cultas. Essas diferenças decorrem do modo clivado como se constituiu a sociedade brasileira. Ou seja, a divisão linguística reflete a divisão econômica e social em que se assentou nossa sociedade, divisão que não fomos ainda capazes de superar ou, ao menos, de diminuir substancialmente.

Muitos de nós acreditamos que a educação é um dos meios de que dispomos para enfrentar essa nossa profunda clivagem econômica e social. Nós linguistas, por exemplo, defendemos que o ensino de português crie condições para que todos os alunos alcancem o domínio das variedades cultas, variedades com que se expressa o mundo da cultura letrada, do saber escolarizado.

Para alcançar esse objetivo, é indispensável informar os alunos sobre o quadro da variação linguística existente no nosso país e, a partir da comparação das variedades, mostrar-lhes os pontos críticos que as diferenciam e chamar sua atenção para os efeitos sociais corrosivos de algumas dessas diferenças (o preconceito linguístico – tão arraigado ainda na nossa sociedade e que redunda em atitudes de intolerância, humilhação, exclusão e violência simbólica com base na variedade linguística que se fala). Por fim, é preciso destacar a importância de conhecer essa realidade tanto para dominar as variedades cultas, quanto para participar da luta contra o preconceito linguístico.

É isso – e apenas isso – que fazem os autores do livro. E não somente os autores desse livro, mas dos livros de português que têm sido escritos já há algum tempo. Subjacentes a essa direção pedagógica estão os estudos descritivos da realidade histórica e social da língua portuguesa do Brasil, estudos que têm desvelado, com cada vez mais detalhes, a nossa complexa cara linguística.

Desses estudos nasceu naturalmente a discussão sobre que caminhos precisamos tomar para adequar o ensino da língua a essa realidade de modo a não reforçar (como fazia a pedagogia tradicional) o nosso apartheid social e linguístico, mas sim favorecer a democratização do domínio das variedades cultas e da cultura letrada, domínio que foi sistematicamente negado a expressivos segmentos de nossa sociedade ao longo da nossa história.

O desvelamento da nossa cara linguística, porém, tem incomodado profundamente certa intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão. Preferem, então, apegar-se dogmática e raivosamente à simplicidade dos juízos absolutos do certo e do errado. Mostram-se assim pouco preparados para o debate franco, aberto e desapaixonado que essas questões exigem.

Carlos Alberto Faraco, linguista, foi professor de português e reitor da UFPR.



Artigo
Publicação: Blog do professor Marcos Bagno
Data: 18/05/2011
Autor: Marcos Bagno
- Marcos Bagno é é linguista, escritor, tradutor e professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília.

Polêmica ou ignorância?

Discussão sobre livro didático só revela ignorância da grande imprensa

Para surpresa de ninguém, a coisa se repetiu. A grande imprensa brasileira mais uma vez exibiu sua ampla e larga ignorância a respeito do que se faz hoje no mundo acadêmico e no universo da educação no campo do ensino de língua. Jornalistas desinformados abrem um livro didático, leem metade de meia páginae saem falando coisas que depõem sempre muito mais contra eles mesmos doque eles mesmos pensam (se é que pensam nisso, prepotentementeconvencidos que são, quase todos, de que detêm o absoluto poder da informação).

Polêmica? Por que polêmica, meus senhores e minhas senhoras? Já faz mais de quinze anos que os livros didáticos de língua portuguesa disponíveis no mercado e avaliados e aprovados pelo Ministério da Educação abordam o tema da variação linguística e do seu tratamento em sala de aula. Não é coisa de petista, fiquem tranquilas senhoras comentaristas políticas da televisão brasileira e seus colegas explanadores do óbvio.

Já no governo FHC, sob a gestão do ministro Paulo Renato, os livros didáticos de português avaliados pelo MEC começavam a abordar os fenômenos da variação linguística, o caráter inevitavelmente heterogêneo de qualquer língua viva falada no mundo, a mudança irreprimível que transformou, tem transformado, transforma e transformará qualquer idioma usado por uma comunidade humana. Somente com uma abordagem assim as alunas e os alunos provenientes das chamadas “classes populares” poderão se reconhecer no material didático e não se sentir alvo de zombaria e preconceito. E, é claro, com a chegada ao magistério de docentes provenientes cada vez mais dessas mesmas “classes populares”, esses mesmos profissionais entenderão que seu modo de falar, e o de seus aprendizes, não é feio, nem errado, nem tosco, é apenas uma língua diferente daquela – devidamente fossilizada e conservada em formol – que a tradição normativa tenta preservar a ferro e fogo, principalmente nos últimos tempos, com a chegada aos novos meios de comunicação de pseudoespecialistas que, amparados em tecnologias inovadoras, tentam vender um peixe gramatiqueiro para lá de podre.

Enquanto não se reconhecer a especificidade do português brasileiro dentro doconjunto de línguas derivadas do português quinhentista transplantados para as colônias, enquanto não se reconhecer que o português brasileiro é uma língua em si, com gramática própria, diferente da do português europeu, teremos de conviver com essas situações no mínimo patéticas. A principal característica dos discursos marcadamente ideologizados (sejam eles da direita ou da esquerda) é a impossibilidade de ver as coisas em perspectiva contínua, em redes complexas de elementos que se cruzam e entrecruzam, em ciclos constantes. Nesses discursos só existe o preto e o branco, o masculino e o feminino, o mocinho e o bandido, o certo e o errado e por aí vai. Darwin nunca disse em nenhum lugar de seus escritos que “o homem vem do macaco”. Ele disse, sim, que humanos e demais primatas deviam ter se originado de um ancestral comum. Mas essa visão mais sofisticada não interessava ao fundamentalismo religioso que precisava de um lema distorcido como “o homem vem do macaco” para empreender sua campanha obscurantista, que permanece em voga até hoje (inclusive no discurso da candidata azul disfarçada de verde à presidência da República no ano passado).

Da mesma forma, nenhum linguista sério, brasileiro ou estrangeiro, jamais disse ou escreveu que os estudantes usuários de variedades linguísticas mais distantes das normas urbanas de prestígio deveriam permanecer ali, fechados em sua comunidade, em sua cultura e em sua língua. O que esses profissionais vêm tentando fazer as pessoas entenderem é que defender uma coisa nãosignifica automaticamente combater a outra. Defender o respeito à variedade linguística dos estudantes não significa que não cabe à escola introduzi-los aomundo da cultura letrada e aos discursos que ela aciona. Cabe à escola ensinar aos alunos o que eles não sabem! Parece óbvio, mas é preciso repetir isso a todo momento.

Não é preciso ensinar nenhum brasileiro a dizer “isso é para mim tomar?”, porque essa regra gramatical (sim, caros leigos, é uma regra gramatical) já faz parte da língua materna de 99% dos nossos compatriotas. O que é preciso ensinar é a forma “isso é para eu tomar?”, porque ela não faz parte da gramática da maioria dos falantes de português brasileiro, mas por ainda servir de arame farpado entre os que falam “certo” e os que falam “errado”, é dever da escola apresentar essa outra regra aos alunos, de modo que eles – se julgarem pertinente, adequado e necessário – possam vir a usá-la TAMBÉM. O problema da ideologia purista é esse também. Seus defensores não conseguem admitir que tanto faz dizer assisti o filme quanto assiti ao filme,que a palavra óculos pode ser usada tanto no singular (o óculos, como dizem 101% dos brasileiros) quanto no plural (os óculos, como dizem dois ou três gatos pingados).

O mais divertido (para mim, pelo menos, talvez por um pouco de masoquismo) é ver os mesmos defensores da suposta “língua certa”, no exato momento em quea defendem, empregar regras linguísticas que a tradição normativa que eles acham que defendem rejeitaria imediatamente. Pois ontem, vendo o Jornal das Dez, da GloboNews, ouvi da boca do sr. Carlos Monforte essa deliciosa pergunta: “Como é que fica então as concordâncias?”. Ora, sr. Monforte, eu lhe devolvo a pergunta: “E as concordâncias, como é que ficam então?

Marcos Bagno é professor da Universidade de Brasília.



Artigo
Publicação: Folha de São Paulo
Data: 16/05/2011
Autor: Hélio Schwartsman
- Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia articulista da Folha de São Paulo.

Uma defesa do "erro" de português

O pessoal pegaram pesado. Da esquerda à direita, passando por vários amigos meus, a imprensa foi unânime em atacar o livro didático "Por uma Vida Melhor", de Heloísa Ramos. O suposto pecado da obra, que é distribuída pelo Programa do Livro Didático, do Ministério da Educação, é afirmar que construções do tipo "nós pega o peixe" ou "os livro ilustrado mais interessante estão emprestado" não constituem exatamente erros, sendo mais bem descritas como "inadequadas" em determinados "contextos".

Os mais espevitados já viram aí um plano maligno do governo do PT para pespegar a anarquia linguística e destruir a educação, pondo todas as crianças do Brasil para falar igualzinho ao Lula. Outros, mais comedidos, apontaram a temeridade pedagógica de dizer a um aluno que ignorar a concordância não constitui erro.

Eu mesmo faria coro aos moderados, não fosse o fato de que, do ponto de vista da linguística --e não o da pedagogia ou da gramática normativa--, a posição da professora Heloísa Ramos é corretíssima, ainda que a autora possa ter sido inábil ao expô-la.

Acredito mesmo que, excluídos os ataques politicamente motivados, tudo não passa de um grande mal-entendido. Para tentar compreender melhor o que está por trás dessa confusão, é importante ressaltar a diferença entre a perspectiva da linguística, ciência que tem por objeto a linguagem humana em seus múltiplos aspectos, e a da gramática normativa, que arrola as regras estilísticas abonadas por um determinado grupo de usuários do idioma numa determinada época (as elites brancas de olhos azuis, se é lícito utilizar a imagem consagrada pelo ex-governador de São Paulo Claúdio Lembo). Podemos dizer que a segunda está para a primeira assim como a pesquisa da etiqueta da corte bizantina está para o estudo da História. Daí não decorre, é claro, que devamos deixar de examinar a etiqueta ou ignorar suas prescrições, em especial se frequentarmos a corte do "basileus", mas é importante ter em mente que a diferença de escopo impõe duas lógicas muito diferentes.

Se, na visão da gramática normativa, deixar de fazer uma flexão plural ou apor uma vírgula entre o sujeito e o predicado constituem crimes inafiançáveis, na perspectiva da linguística nada disso faz muito sentido. Mas prossigamos com um pouco mais de vagar. Se os linguistas não lidam com concordâncias e ortografia o que eles fazem? Seria temerário responder por todo um ramo do saber que ainda por cima se divide em várias escolas rivais. Mas, assumindo o ônus de favorecer uma dessas correntes, eu diria que a linguística está preocupada em apontar os princípios gramaticais comuns a todos os idiomas. Essa ideia não é exatamente nova. Ela existe pelo menos desde Roger Bacon (c. 1214 - 1294), o "pai" do empirismo e "avô" do método científico, mas foi modernamente desenvolvida e popularizada pelo linguista norte-americano Noam Chomsky (1928 -).

Há de fato boas evidências em favor da tese. A mais forte delas é o fato de que a linguagem é um universal humano. Não há povo sobre a terra que não tenha desenvolvido uma, diferentemente da escrita, que foi "criada" de forma independente não mais do que meia dúzia de vezes em toda a história da humanidade. Também diferentemente da escrita, que precisa ser ensinada, basta colocar uma criança em contato com um idioma para que ela o adquira quase sozinha. Mais até, o fenômeno das línguas crioulas mostra que pessoas expostas a pídgins (jargões comerciais normalmente falados em portos e que misturam vários idiomas) acabam desenvolvendo, no espaço de uma geração, uma gramática completa para essa nova linguagem. Outra prova curiosa é a constatação de que bebês surdos-mudos "balbuciam" com as mãos exatamente como o fazem com a voz as crianças falantes.

O principal argumento lógico usado por Chomsky em favor do inatismo linguístico é o chamado Pots, sigla inglesa para "pobreza do estímulo" ("poverty of the stimulus"). Em grandes linhas, ele reza que as línguas naturais apresentam padrões que não poderiam ser aprendidos apenas por exemplos positivos, isto é, pelas sentenças "corretas" às quais as crianças são expostas. Para adquirir o domínio sobre o idioma elas teriam também de ser apresentadas a contraexemplos, ou seja, a frases sem sentido gramatical, o que raramente ocorre. Como é fato que os pequeninos desenvolvem a fala praticamente sozinhos, Chomsky conclui que já nascem com uma capacidade inata para o aprendizado linguístico. É a tal da Gramática Universal.

O cientista cognitivo Steven Pinker, ele próprio um ferrenho defensor do inatismo, extrai algumas consequências interessantes da teoria. Para começar, ele afirma que o instinto da linguagem é uma capacidade única dos seres humanos. Todas as tentativas de colocar outros animais, em especial os grandes primatas, para "falar" seja através de sinais ou de teclados de computador fracassaram. Os bichos não desenvolveram competência para, a partir de um número limitado de regras, gerar uma quantidade em princípio infinita de sentenças. Para Pinker, a linguagem (definida nos termos acima) é uma resposta única da evolução para o problema específico da comunicação entre caçadores-coletores humanos.

Outro ponto importante e que é o que nos interessa aqui diz respeito ao domínio da gramática. Se ela é inata e todos a possuímos como um item de fábrica, não faz muito sentido classificar como "pobre" a sintaxe alheia. Na verdade, aquilo que nos habituamos a chamar de gramática, isto é, as prescrições estilísticas que aprendemos na escola são o que há de menos essencial, para não dizer aborrecido, no complexo fenômeno da linguagem. Não me parece exagero afirmar que sua função é precipuamente social, isto é, distinguir dentre aqueles que dominam ou não um conjunto de normas mais ou menos arbitrárias que se convencionou chamar de culta. Nada contra o registro formal, do qual, aliás, tiro meu ganha-pão. Mas, sob esse prisma, não faz mesmo tanta diferença dizer "nós vai" ou "nós vamos". Se a linguagem é a resposta evolucionária à necessidade de comunicação entre humanos, o único critério possível para julgar entre o linguisticamente certo e o errado é a compreensão ou não da mensagem transmitida. Uma frase ambígua seria mais "errada" do que uma que ferisse as caprichosas regras de colocação pronominal, por exemplo.

Podemos ir ainda mais longe e, como o linguista Derek Bickerton (1925 -), postular que existem situações em que é a gramática normativa que está "errada". Isso ocorre quando as regras estilísticas contrariam as normas inatas que nos são acessíveis através das gramáticas das línguas crioulas. No final acabamos nos acostumando e seguimos os prescricionistas, mas penamos um pouco na hora de aprender. Estruturas em que as crianças "erram" com maior frequência (verbos irregulares, dupla negação etc.) são muito provavelmente pontos em que estilo e conexões neuronais estão em desacordo.

Mais ainda, elidir flexões, substituindo-as por outros marcadores, como artigos, posição na frase etc., é um fenômeno arquiconhecido da evolução linguística. Foi, aliás, através dele que os cidadãos romanos das províncias foram deixando de dizer as declinações do latim clássico, num processo que acabou resultando no português e em todas as demais línguas românicas.

A depender do zelo idiomático de meus colegas da imprensa, ainda estaríamos todos falando o mais castiço protoindo-europeu.

Não sei se algum professor da rede pública aproveita o livro de Heloísa Ramos para levar os alunos a refletir sobre a linguagem, mas me parece uma covardia privá-los dessa possibilidade apenas para preservar nossas arbitrárias categorias de certo e errado.

Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.



Assunto(s): Livro Didático , EJA , Dossiê
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