“Olê, caatinga olé, lê...
Deixa o rei passar,
Deixa o rei passar,
Arreda, minha gente,
Deixa o nosso rei passar.”
Sou cantor e catopé, canto a vida do meu povo. Os versos da minha melodia são carregados de histórias e os batuques do meu tamborim lembram o barulho dos negros, da minha gente, construindo: casas, muros, cidades, igrejas. Igrejas de pedra, forradas de ouro, impregnadas de humilhação e sofrimento.
Eu vi a fé da minha gente, eu acreditei que as pessoas seriam iguais e vivi para ver uma vida melhor.
Sou filho de um casal de escravos, nasci numa ribanceira das terras de Grão Magal, éramos oito irmãos: cinco “fio homi” e três “menina muié”. A casa era feita de pedras, resultado do trabalho de Dindin, meu avô, e de papai. Algumas paredes eram de enchimento, barreadas a mão.
Minha mãe adorava seu fogão a lenha, a moringa e sua coleção de panelas de barro, que eram arrumadas em sua prateleira. Quando chegavam as visitas, elas já esperavam por seu café, famoso por seu ótimo sabor, servido em bonitas canecas, acompanhado de apetitosas broas de fubá.
Eu cresci ouvindo “causos” de negros, de viajantes, lendas de bolas de fogo, de almas penadas... Cresci ouvindo as melodias do meu pai, acompanhadas da caixa e do pandeiro.
Negro naquela época não tinha vez; não podíamos estudar. Tínhamos a obrigação de ajudar nossos pais. Com apenas 10 anos, os meninos iam para as lavouras e as meninas lavavam bacias e mais bacias de roupas.
Na minha juventude, vim para Francisco Sá, em busca de melhores condições de vida. Trabalhei como cargueiro, se bem me lembro, por dois mil contos de réis. Lembro-me do ar puro, do rio São Domingos limpo, das mulheres lavando roupas e das crianças peladas com seus barrigões.
Naquele tempo, o movimento da cidade começava no primeiro raio de sol, a cidade era um vilarejo conhecido como Brejo das Almas. Era cheio de viajantes vindos do Catuni, das “Cana Brava”, de São Geraldo. Dia de feira era uma verdadeira festa.
O tempo foi passando e com ele vieram as transformações. O ser humano transformou não só a sua condição de vida, mas também seu jeito de pensar.
O mundo para mim, hoje, cabe na palma da minha mão, o mundo ficou pequeno na minha cabeça de velho. Tudo ficou perto e fácil.
Nas noites das festas de setembro, saio com meu capacete enfeitado e minha viola. Eu, Enrique Poeira, 107 anos, oito filhos, vinte netos, 10 bisnetos. Minha poeira de catopé, parece ciscos de mágica, nesta cidade que não coube no mapa, mas transborda em meu coração.
E. E. TIBURTINO LENA
Cidade : Francisco Sá – MG
Professora: VERÔNICA CRISTINA AZEVEDO RODRIGUES
Aluna: ÉRIKA LAYS CARDOSO FERNANDES